sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Disneilândia

Isso foi na véspera. O dedo dele na cara dela e um monte de palavras que  depois fui saber que eram muito feias, menino, vê se pode uma criaturinha bonita assim falar desse jeito. Me desculpa, Hélcio, ela sussurrava e repetia, me desculpa. O eu te odeio veio dele e essa é a frase que eu nunca esqueci de toda a cena. Depois a mão imensa dele marcando o rosto dela num estalo muito alto. Era tão insuportável que protegi o rosto do Tor, fechei meus olhos e não vi mais nada.

O dia que a coisa aconteceu de fato eu me lembro bem. Ela me acordou de madrugada, o beijo de sempre na testa que eu limpava com as costas da mão. É muito cedo, reclamei, e ela foi me levantando e penteando, não pude perguntar nem responder nada. Na época achei que ela estava feliz, mas hoje sei que não. Ninguém tem tanta pressa quando está feliz.

Vamos, criaturinha, quer a blusa do He-Man ou do Batman? Só que bobo eu não era. Ela não deixava criança escolher coisa alguma, só fazia isso para levar a gente ao médico ou à missa. Fiquei preocupado. Aonde a gente vai? E ela arrumando a minha mochila vermelha, a mochila grande das férias. Fala baixo pra não acordar o seu irmão. Vai ser divertido, ela prometeu, e eu só sabia acreditar.

Deixamos a casa na ponta dos pés, a brincadeira era não fazer barulho. Ela tinha um grande talento pra me distrair. Eu já estava adorando aquela coisa secreta, muito importante, cuidado pra não esbarrar em nada. Seu irmão não pode ir, ele é muito pequeno e eu fiquei ainda mais orgulhoso. Ele ia ver quando eu voltasse, as histórias, tudo, ele ia ver. Eu andei de avião, Tor, e ele ia chorar porque isso é o que ele fazia quando ele achava que a mamãe gostava mais de mim. Eu fui protegendo a mamãe o caminho todo, Tor, e ele ia me achar ainda mais invencível.

Chegamos, criaturinha, e o beijo na testa que eu limpei com as costas da mão. Lá era frio e o Natal era de verdade, todo branco. Posso correr do lado de fora? e ela deixou tudo. Lá, ela deixava tudo. Sorvete em vez de legume, TV até tarde. Mãe, a nossa casa é igual de desenho animado! Escada, dois andares, porão, eu era a criança mais feliz do mundo. Quando eu chegasse em casa e contasse pro Tor, era isso que eu pensava, contar pra ele era mais importante do que viver aquilo tudo.

Passou um tempo sendo assim, até bom, não sei se dias ou meses. Relógio de criança é outro, é medido em bolinhas de gude ou soldados de chumbo. E ela tinha muito talento pra me distrair. Se eu perguntava deles ela falava da nossa próxima viagem, de um passeio de barco, daquele autorama que eu gostei no shopping, da Disneilândia. Disneilândia mesmo, com Mickey, montanha russa e hambúrger todo dia. Imagina quando o Tor ouvisse isso.

Mas então aconteceu o inevitável: deixei de ser criança. Me lembro que era um dia azul e lá esses dias eram poucos. Acho que era verão porque eu estava na piscina e ouvi, vem aqui na sala, criaturinha. No sofá xadrez, dois rostos muito brancos: um, de mãos dadas com ela. O outro um garoto redondo de dentes separados que ficou me encarando.

 Esse é meu namorado, Joey, e esse rapazinho é seu novo irmãozinho William. Ela só podia estar louca, pensei, porque eu já tinha um irmão e não era aquele. Eu não queria de jeito nenhum um irmão assim. Ele é gordo!, gritei, e apanhei na hora.

Desci para o porão e chorei muito, mas não do tapa, o tapa não doeu nada. É que senti pela primeira vez uma coisa estranha, um enjôo, uma tristeza, uma vontade de ver só uma pessoa no mundo. Quando o Tor chega, mãe? Você vai trazer o Tor pra ficar com a gente, não vai? Calma, que isso é saudade e saudade sempre passa, ela explicou, chorando na minha frente. Nenhuma mãe pode chorar na frente de uma criança de 7 anos. Ela só podia estar louca.

No dia seguinte arrumei a mochila pra ir embora, não queria mais ficar ali, de jeito nenhum, chega. Entrei na cozinha muito decidido e ela cochichando no telefone. Quando é que a gente volta? E ela mandando eu falar baixo. Quando é que a gente volta? Eu queria saber. Quando, responde? E ela desligou na cara de alguém, respirou fundo e me olhou muito carinhosa: E se a gente fosse esquiar no próximo fim-de-semana, só nós dois?

Meu dedo na cara dela e as mesmas palavras muito feias que eu aprendi naquela véspera. O eu te odeio veio de mim e ela nunca mais conseguiu me distrair. 

Um comentário:

  1. bem ao estilo do cría cuervos que deveria estar na sua lista. Suspeitamente satisfeito com mais esta Disney, LELG

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