Ele não queria ter um pai com a mesma certeza que um dia o pai não quis ter um filho. Eram parecidos demais pra se suportarem. Mas a mãe, a avó, as mulheres. Mulheres insistem em tudo, principalmente no impossível.
Ele sentado tomando a segunda coca-cola sem gelo e sem nenhuma sede. Queria gostar de beber e saber ser inconveniente. Queria ter coisas profundíssimas a dizer, sentimentos esquecidos, mágoas incuráveis, mas nem isso.
Uma vez viu um atropelamento e se sentiu mal dois minutos por aquele desconhecido. Dois minutos. Depois ficou com fome e parou num Mcdonald’s. Difícil se comover com o que nunca fez parte da gente. Batata-grande, por favor.
O pai chegou suando, homens sérios gostam de parecer atrasados e importantes. Continuou falando no celular enquanto cumprimentava, enquanto sentava, enquanto pedia com gestos atrapalhados uma coca cola sem gelo.
Eram parecidos demais para se suportarem.
Ele não se importava, não esperava nada daquele almoço. A indiferença é de uma calma, de uma serenidade.
- Outra coca? - sugeriu o garçom.
- Um guaraná, por favor. Bastante gelo.
Quis mostrar ao pai que não eram a mesma coisa, que nunca foram. Mentiu.
O pai colocou uma pasta preta enorme na mesa - homens sérios carregam pastas enormes e pretas.
Não fez nenhuma cara especial, nenhuma pausa. Fez parecer a coisa mais natural do mundo. E era.
- Eu vou morrer.
O filho riu. Rir é um refúgio.
- É sério. Essa papelada é pra você assinar e facilitar a minha vida. Ou melhor , a sua vida. Eu vou estar morto mesmo.
Foi tirando uns papéis da pasta preta e marcando com um x vermelho algumas páginas.
O filho bebeu o guaraná inteiro de uma vez, como se fosse uma cachaça.
- Vai morrer de quê?
- Uma mancha no pescoço. Acredita que ainda morre gente por causa de uma mancha no pescoço?
Ele disse isso pegando um último documento. Advogados tem documento pra tudo.
- Deve ter jeito. Hoje em dia tudo tem.
- Parece que não. Anda, assina. Não quero te trazer problemas.
Ele falava isso acreditando, como se a ausência de um pai pudesse livrar alguém de precisar de um pai. Como se o buraco que ele deixou pudesse ser ocupado por outra coisa, por aquele papel ou pelos terrenos que ele ia herdar.
- Você contou pra minha mãe?
- Porque é que você acha que eu marquei esse encontro? Podia ter mandado tudo pela internet, mas ela insistiu que isso não era assunto pra email. Você conhece a peça.
A mãe na certa esperava que a notícia fosse gerar uma grande catarse, que fosse despertar alguma paixão ancestral naqueles homens. Eles iam então se abraçar, chorar copiosamente, tentar de alguma forma alucinada recuperar os 19 anos de ausência. Iriam ao maracanã, teriam longas conversas sobre mulheres, tomariam um porre juntos.
Seria bonito, sem dúvida, mas ninguém ali tinha fígado pra tanta mentira.
O filho desandou a assinar os papéis um a um, muito eficiente.
- Tem que assinar esse aqui também?
Eles eram parecidos demais para se suportarem.
- Frente e verso.
Assinou, conferiu, colocou os papéis de volta na pasta preta. O pai bebeu em silêncio a coca, o filho pediu outro guaraná. Teria sido um encontro igual a todos os outros, por pouco não foi.
Quando o pai ameaçou se levantar pra ir embora rápido como sempre, um ódio atrasado empurrou o filho, que levantou primeiro.
- Desculpe, preciso ir.
Apertou as mãos do pai educadamente e saiu sem olhar pra trás, deixando o velho suando na pequena cadeira de metal.
Pelo menos desta vez, desta última vez, o filho pensou, não ia ser ele o abandonado.
Gosto disso. Como gosto do que venho lendo seu. Cheguei pelo texto da traição carioca. Fiquei pela duas vezes mãe. Passo, de agora, a ansiar o próximo. Obrigado por isso.
ResponderExcluir