quinta-feira, 21 de junho de 2012

Dinossauro

Um:
Já é quase todo de mentira.
Dente de resina, tubo de plástico pra ser traquéia, uma máquina é que respira.
Em vez de rótula, pino, em vez de osso essa massa esponjosa.
O coração só bate quando é lembrado por um remédio colorido.
Até o rim veio emprestado de uma menina morta.
O corpo todo já desistiu, só as sinapses insistem.
 O aparelho no labirinto é pra ouvir qualquer coisa dos que vivem de verdade: ele finge.
Outro:
Chega esbaforido, tem pressa.
Tudo nele é de verdade e músculo.
Gordura, fluidos, vesícula, garganta, cuspe. Ele engole. 
Suas células gordas se reproduzem como se fosse pra sempre.
Este homem funciona sozinho.
Assim, desobrigado de existir, ele pode até ter sentimento e tem:
“coitado desse velho".
Distraído de funcionar, o homem verdadeiro pode pensar em tudo, até em usar um boné.
O homem de mentira então arrasta o dedo pro buraco na garganta e inventa uma voz metálica.
-       Tira esse boné pra falar comigo, moleque. Me respeita.
O homem de mentira não tem mais corpo nem tempo, mas esbanja história e exala genética. Alguém duvida da força de um dinossauro?
O homem de verdade então cala e entende o seu tamanho: ele vai ser sempre pequeno como um filho. 

terça-feira, 12 de junho de 2012

alcachofras são paroxítonas



-       Uma alcachofra.
-       Como assim alcachofra?
-       A alcachofra é uma flor, você sabia?
-       Ninguém dá alcachofra de presente pra namorada.
-       A gente não era namorado.
-       A alcachofra era uma não-flor para uma não-namorada. Entendi.
-       Depois a gente saiu pra jantar.
-       Ele tem cara que pede vinho caro.
-       Ele pediu chá.
-       Quem é que janta chá?
-       Aí ele pediu um carnaval.
-       Justo.
-       Aí ele pediu minha mão.
-       Nunca achei que eu fosse te ver assim, de noiva.
-       Nunca achei que eu fosse me ver assim de novo.
-       Isso só acontece em novela.
-       E a gente nem vê novela.
-       É coisa de fim de filme, sabia?
-       Eu sempre durmo no começo dos filmes.
-       Ele te acorda?
-       Melhor: ele me deixa sonhando.
-       Mas e a realidade?
-       Experimenta colocar uma grinalda.
-       Vocês não foram rápido demais?
-       Aqui  não tem radar.
-       Será que não é muito cedo?
-       A gente não usa relógio.
-       Mas e os divórcios? As dúvidas? As estatísticas? E a ciência? A matemática? A lógica?  E a última? E a próxima?

   (Deixa o mundo gritar suas proparoxítonas todas agudas e acentuadas, amor. Deixa que alcachofras são raras, mas não tem acento nem hífen).

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Supérflua

As orquídeas não servem pra nada.
Anteras, estomas, estigmas, rizomas bem que se esmeram - em vão.
Arnica no tombo, camomila na insônia, manjericão no molho, lavanda no quengo.
Mas a orquídea, muito egípcia, tá se danando pra a sua mazela.
Ela na sala é uma rainha exibida e exótica e abusa toda erótica suas cores.
Maracujá basta ter terra, cactus sobrevive a um bombardeio, violeta se cria até em banheiro de consultório.
 Orquídea morre com vento, com sol, com chuva, morre de muito e de pouco, morre até de tristeza.
Mas ela nem liga e arrota arrogante seus labelos e bainhas nas flores que são fáceis.
(Não se tem notícia de nenhuma orquídea que quis ser margarida.)
Então haja ardósia, açaí,  nó de pinho, brita, barro, dolomita, piaçava, haja carvão pra adubar essa dondoca.
As orquídeas são inúteis mas você vai erguer um castelo pra elas: estufa, ripado, fumo, xaxim, papel celofane, ufa.
Já ela, adivinha: não vai fazer nada por você.
Nem um calmante, nenhuma compressa, nem um chazinho.
A orquídea é esqueleto e substrato de tudo que é deslumbrante e só.
Ela sabe que não há nada mais imprescindível que o supérfluo.
As orquídeas não servem pra nada.
E no entanto cada orquídea é urgente.