O dia que a coisa aconteceu de fato eu me
lembro bem. Ela me acordou de madrugada, o beijo de sempre na testa que eu
limpava com as costas da mão. É muito cedo, reclamei, e ela foi me levantando e
penteando, não pude perguntar nem responder nada. Na época achei que ela estava
feliz, mas hoje sei que não. Ninguém tem tanta pressa quando está feliz.
Vamos, criaturinha, quer a blusa do He-Man ou
do Batman? Só que bobo eu não era. Ela não deixava criança escolher coisa
alguma, só fazia isso para levar a gente ao médico ou à missa. Fiquei
preocupado. Aonde a gente vai? E ela arrumando a minha mochila vermelha, a
mochila grande das férias. Fala baixo pra não acordar o seu irmão. Vai ser
divertido, ela prometeu, e eu só sabia acreditar.
Deixamos a casa na ponta dos pés, a
brincadeira era não fazer barulho. Ela tinha um grande talento pra me distrair.
Eu já estava adorando aquela coisa secreta, muito importante, cuidado pra não
esbarrar em nada. Seu irmão não pode ir, ele é muito pequeno e eu fiquei ainda
mais orgulhoso. Ele ia ver quando eu voltasse, as histórias, tudo, ele ia ver.
Eu andei de avião, Tor, e ele ia chorar porque isso é o que ele fazia quando
ele achava que a mamãe gostava mais de mim. Eu fui protegendo a mamãe o caminho
todo, Tor, e ele ia me achar ainda mais invencível.
Chegamos, criaturinha, e o beijo na testa que
eu limpei com as costas da mão. Lá era frio e o Natal era de verdade, todo
branco. Posso correr do lado de fora? e ela deixou tudo. Lá, ela deixava tudo.
Sorvete em vez de legume, TV até tarde. Mãe, a nossa casa é igual de desenho
animado! Escada, dois andares, porão, eu era a criança mais feliz do mundo.
Quando eu chegasse em casa e contasse pro Tor, era isso que eu pensava, contar
pra ele era mais importante do que viver aquilo tudo.
Passou um tempo sendo assim, até bom, não sei
se dias ou meses. Relógio de criança é outro, é medido em bolinhas de gude ou
soldados de chumbo. E ela tinha muito talento pra me distrair. Se eu perguntava
deles ela falava da nossa próxima viagem, de um passeio de barco, daquele
autorama que eu gostei no shopping, da Disneilândia. Disneilândia mesmo, com
Mickey, montanha russa e hambúrger todo dia. Imagina quando o Tor ouvisse isso.
Mas então aconteceu o inevitável: deixei de
ser criança. Me lembro que era um dia azul e lá esses dias eram poucos. Acho
que era verão porque eu estava na piscina e ouvi, vem aqui na sala,
criaturinha. No sofá xadrez, dois rostos muito brancos: um, de mãos dadas com
ela. O outro um garoto redondo de dentes separados que ficou me encarando.
Esse é
meu namorado, Joey, e esse rapazinho é seu novo irmãozinho William. Ela só
podia estar louca, pensei, porque eu já tinha um irmão e não era aquele. Eu não
queria de jeito nenhum um irmão assim. Ele é gordo!, gritei, e apanhei na hora.
Desci para o porão e chorei muito, mas não do
tapa, o tapa não doeu nada. É que senti pela primeira vez uma coisa estranha,
um enjôo, uma tristeza, uma vontade de ver só uma pessoa no mundo. Quando o Tor
chega, mãe? Você vai trazer o Tor pra ficar com a gente, não vai? Calma, que
isso é saudade e saudade sempre passa, ela explicou, chorando na minha frente.
Nenhuma mãe pode chorar na frente de uma criança de 7 anos. Ela só podia estar
louca.
No dia seguinte arrumei a mochila pra ir
embora, não queria mais ficar ali, de jeito nenhum, chega. Entrei na cozinha
muito decidido e ela cochichando no telefone. Quando é que a gente volta? E ela
mandando eu falar baixo. Quando é que a gente volta? Eu queria saber. Quando,
responde? E ela desligou na cara de alguém, respirou fundo e me olhou muito
carinhosa: E se a gente fosse esquiar no próximo fim-de-semana, só nós dois?
Meu dedo na cara dela e as mesmas palavras
muito feias que eu aprendi naquela véspera. O eu te odeio veio de mim e ela
nunca mais conseguiu me distrair.
bem ao estilo do cría cuervos que deveria estar na sua lista. Suspeitamente satisfeito com mais esta Disney, LELG
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