O carioca que sai do Rio vai ser
sempre apontado como um traidor. É mesmo um desrespeito abandonar tanta beleza,
uma ousadia achar que pode haver coisa melhor. Se mudar do Rio pra São Paulo
então é caso de pena de morte. É pior que mudar de time, pior que mudar de
nome. Falsidade ideológica, daí pra baixo. O primeiro dia que um carioca se
sente realmente feliz em São Paulo bate uma culpa sincera. E os amigos que
ficaram não ajudam: Como você pode? Logo você que amava a praia, justo você que
abria a janela e ficava feliz até de estar parada no trânsito da Lagoa? Até tu?
E desandam a falar da feiúra, da
grandeza, dos tons de cinza, dos engarrafamentos, das enchentes, da frieza
paulistana. Como é que você foi largar isso aqui? – aponta o carioca para qualquer
direção sabendo que sempre vai ter uma montanha ridiculamente bem posicionada,
recortando um céu azul e uma beira do mar por perto. Covardia. E é tão difícil
entender como explicar.
Mas tento. Amigos: se tem alguém
que sabe como o Rio é maravilhoso é quem foi embora. Essa praia dói mais ainda quando não se tem. Voltar pra São
Paulo segunda de manhã e deixar o Rio amanhecendo pra trás é de uma violência
que eu nem te conto. Todas as fotos de pôr-do-sol no Arpoador me magoam a ponto
de querer sair do Instagram. E cada sábado de verão que alguém te chama para
uma praia “pertinho, só 3 horas de carro”, cada “vista linda” que o paulista
vai te mostrar na maior boa-vontade e que se revela apenas uma visão panorâmica
para um monte de prédios – juro: a vontade de chorar não é metafórica.
“Então volta”, seus amigos falam. Fica,
insistem: aqui é gostoso, quentinho, seguro. É mesmo tentador. O Rio é um colo
de mãe. E os argumentos cariocas pra não se sair do Rio são os mesmos que a sua
mãe usou pra você não sair de casa. Porque ir embora, se aqui é tão bom? Você tem tudo o que precisa,
casa, comida, roupa lavada. Você não gosta mais da gente?
Sim, Rio, ainda amo você
profundamente. Não é você, sou eu. A gente ama os pais mas um dia precisa sair
de casa. Eu me mudei de um apartamento gigantesco com vista pro pão de açúcar pra morar num quarto e sala sem elevador
com vista para uma parede. Sim, eu amava meus pais, mas eu precisava ter o meu
cantinho. São Paulo parece grande, mas se você olhar de perto é só o cantinho
de muita gente.
É a chance de começar uma nova
história que conquista quem vem pra cá. O Rio já está pronto. São Paulo tem
cheiro de cimento, barulho de prédio em construção. De um lado uma montanha de
5 bilhões de anos, de outro um terreno escrito: em breve. É o conforto do
estabelecido versus a adrenalina de todas as possibilidades. Tem quem se acanhe
diante de tanto desconhecido. Mas
pra mim, que aprendi a correr antes de engatinhar, São Paulo é um
alívio.
Claro que dá medo sim, dá
saudade, sai caro. Tem dias que dá
vontade de voltar correndo pra casa da mamãe. E eu volto. De preferência no fim
de semana, cheia de saudade. Aí, até as piadas que você não achava graça ficam engraçadíssimas.
Quando eu volto pro Rio, acho tudo divertido e bucólico. O serviço ruim não me atrapalha,
a impontualidade fica charmosa, as eternas promessas de “passa lá em casa” tem
o efeito de um abraço carinhoso.
Mas minha saudade não é o
suficiente para os cariocas. “Porque você gosta tanto de lá?”, me perguntam,
inconformados. Como toda mãe, o Rio é passional e exagerado. Ele te dá muito,
por isso mesmo cobra uma fidelidade polarizada: ou você gosta de mim ou gosta
de São Paulo. O Rio é uma mulher deslumbrante que, por isso mesmo, lida muito
mal com rejeição.
São Paulo é mais humilde, está acostumada a ser mau tratada. É
feia, sim, mas tem espelho em casa. Sabe que não pode sair botando banca. Ela te
pega aos poucos, vai comendo pelas beiradas. Conquista primeiro o seu conforto,
depois sua simpatia. Quando você se dá conta, não sabe mais viver sem ela.
São Paulo aceita tranquilamente ser
“a outra” até porque é a outra cidade de quase todo mundo que mora nela. Aqui,
como não podia deixar de ser, aprendi os tons de cinza: não existe só feio e
bonito, perto ou longe, verão ou inverno. Todas as estações do ano podem
acontecer em um dia e isso dá uma sensação de liberdade danada. Apesar da
dureza aparente, São Paulo é muito flexivel.
“Que palhaçada! Liberdade é correr
na praia de manhã”, seus amigos vão dizer – e estão certos também. A natureza
do Rio te dá o horizonte como limite. Mas a sombra e água fresca causavam em
mim certa preguiça de ir até lá. O Rio é uma mãe manipuladora, que manda e
desmanda e você nem percebe porque é gostoso receber as ordens dela. “Vá a
praia, sorria, coma direito, fica mais um pouquinho, descansa.”
São Paulo não é mãe de ninguém. Nem
vem pedir colo que aqui não tem, se vira malandro. O que é que você vai fazer
com essa tal liberdade?, já perguntava o pagode paulistano anos atrás. São
Paulo impõe muito pouco. Ela vai ser interessante, se você for. É uma relação
de parceria, tá longe de ser amor incondicional. No Rio, basta estar ali. Aqui não. Não se vive EM São Paulo,
mas COM São Paulo.
Se isto é melhor que aquilo, não dá
pra dizer, nem precisa. Fui muito feliz com o Rio mandando em mim por 27 anos.
Eu sentia tanta obrigação de ir a praia, que de vez em quando torcia pra estar
chovendo só pra eu poder fazer qualquer outra coisa. Só um carioca pode
entender esse sentimento.
O Rio é uma linda história com começo, meio e fim e todos
viveram felizes para sempre. São Paulo é assunto pra vida toda, é futuro que
não acaba mais, final aberto. Se nem o meu GPS consegue dar conta de tanta
atualização e novidade, imagina eu.
Quando dá preguiça de ir tão pra
frente, eu voo pro Flamengo, pra vista pro mar, pra tudo que eu já conheço.
Depois de uma semana volto correndo com saudade do meu anonimato, saudade de
ser de fora. Taí mais uma coisa coisa boa que só um exilado pode sentir: o
prazer de dizer numa mesa “sim, eu sou carioca” com certo ar de superioridade,
sabendo que vai atrair algumas antipatias, mas certamente toda a atenção do mundo.
O carioca se acha sim, e se acha
porque é. É um luxo ser do Rio. Nós somos uma grife que eu, pelo menos, uso sem
parcimônia, em estampas bem grandes. E o paulista, generoso que só, abre espaço
pra toda essa prepotência e gosta da gente. Um paulista vê muito mais graça num
carioca do que um carioca vê em outro carioca.
Mas não é esse textinho bobo que
vai fazer meus amigos mudarem de ideia e me absolverem. “Quem diria, até a
Patricia se vendeu,” eles vão dizer. Carioca não se enrola nem se convence, eu sei
bem. Por isso, se você sair do Rio
pra morar em São Paulo, já vai sabendo: você será sempre considerado um traidor.
Mas, talvez pra aliviar a culpa que ainda sinto, peço clemência ao júri:
traidor não, vai. No máximo me deixa ser condenada por bigamia: sou capaz de
ter dois amores profundos ao mesmo tempo.