terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Sobre mim


Esse texto ia ser sobre você. Sobre como você me machucou com a sua covardia. Não hoje, hoje não foi nada. A dor de hoje só me fez enxergar você assim: de capacete, joelheira, luvas. Você todo protegido, absolutamente imune.  À prova de todos os  fogos. Você não queima, não dói, você não quebra.
Eu andando de trator, eu exterminando uma civilização e você bem calmo na sua bicicleta de rodinha. Tudo pra não cair, tudo com muita calma. Olha pra frente, pisa no freio, cuidado. Você dizia que eu era assustada, mas foi você que nunca tirou a cerca, você é que nunca desligou o alarme.  
Eu entendo quando você diz que eu não te escuto. Me fiz de surda quando você gritou a sua calma. Você me falou de alergia e eu te dei um gato. Me falou de solidão e eu trouxe minhas malas. Deixei pouco espaço pras suas coisas. Baguncei seu armário. E não me arrependo: se eu te escutasse a gente não tinha sido.
Você fez bem de não acreditar na gente, de não apostar, de usar cinto segurança. Você acertou em me pedir pra ir embora porque mimada do jeito que eu sou eu ia ficar e te obrigar a ser feliz comigo.
Eu nem sei mais chorar por isso, só tenho que te agradecer. Muito obrigada, meu bem, por ter tirado sem pena tudo o que eu achava que eu precisava pra viver, minha casa, meu amor. Só assim pra eu aprender que posso fazer tudo de novo. Você tinha toda razão: eu sou grande demais pro meu tamanho.
Não se sinta mal por ser covarde, por ser pequeno, por ser homem. Vou morrer um pouco, mas só hoje.
Não se sinta culpado, porque esse texto ia ser sobre você, mas não é. Quando fui falar de você, vi que estava, de novo, falando de mim. Eu até queria escrever sobre você, acredite. Mas infelizmente, amor, eu nem te conheço. 
Vai embora tranqüilo. Não tenha pena de mim porque eu sei inventar histórias de amor muito boas. 
E se tem uma coisa que eu aprendi ao seu lado foi a ficar sozinha.



domingo, 29 de janeiro de 2012

Pura sorte


Eu sofro por ele aos poucos. Economizo minha dor, parcelo em muitas vezes, quero sofrer com juros. Tenho medo que acabe  em mim o pouco que ele me fez sofrer. Gosto dele ainda ser um assunto.
E nem adianta me dizer que ele fala isso pra todas, o quanto ele é desonesto. Ninguém está procurando honestidade quando se apaixona, isso aqui não é eleição pra síndico do prédio. Pra mim tanto faz se ele se ele age como um príncipe ou como o bom filho da puta que é.
(Quando ler esse texto você vai pensar que eu tenho raiva de você, mas a raiva que eu tenho é de mim. E não é porque eu dei no primeiro dia, ou porque me declarei no primeiro susto, mas porque eu escrevi pra você. E quem escreve sabe que isso é muito mais do que ficar nua: é ficar sem pele. )
Mas ele é tão educado, esse idiota, tão correto. E ele acha que isso basta, como se bons modos pudesse ser confundido com amor.
Ora, me poupe. Aquele respeito todo que ele tem por mim é um insulto. Quem ama não tem tempo de pensar em solenidade, consideração é um não-sentimento.
(Me elogiar é fácil, quero ver se você é educado o suficiente pra me comer pro resto da vida.)
Ele diz que eu sou melhor que ele na esperança que isso me traga algum alívio. Como se a medalha de “melhor pessoa da relação” não fosse de chumbo.
(Então aprende, menino: não existe meritocracia em amar. No amor não vence quem se dedica mais, quem acorda mais cedo, quem faz a janta. Não tem sistema de pontos corridos, não tem tira-teima.)
As piores poesias do mundo já disseram que o amor é um jogo - quanta babaquice. Todo jogo tem alguma justiça, em geral vence o melhor.
Amor é pura sorte.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Disneilândia

Isso foi na véspera. O dedo dele na cara dela e um monte de palavras que  depois fui saber que eram muito feias, menino, vê se pode uma criaturinha bonita assim falar desse jeito. Me desculpa, Hélcio, ela sussurrava e repetia, me desculpa. O eu te odeio veio dele e essa é a frase que eu nunca esqueci de toda a cena. Depois a mão imensa dele marcando o rosto dela num estalo muito alto. Era tão insuportável que protegi o rosto do Tor, fechei meus olhos e não vi mais nada.

O dia que a coisa aconteceu de fato eu me lembro bem. Ela me acordou de madrugada, o beijo de sempre na testa que eu limpava com as costas da mão. É muito cedo, reclamei, e ela foi me levantando e penteando, não pude perguntar nem responder nada. Na época achei que ela estava feliz, mas hoje sei que não. Ninguém tem tanta pressa quando está feliz.

Vamos, criaturinha, quer a blusa do He-Man ou do Batman? Só que bobo eu não era. Ela não deixava criança escolher coisa alguma, só fazia isso para levar a gente ao médico ou à missa. Fiquei preocupado. Aonde a gente vai? E ela arrumando a minha mochila vermelha, a mochila grande das férias. Fala baixo pra não acordar o seu irmão. Vai ser divertido, ela prometeu, e eu só sabia acreditar.

Deixamos a casa na ponta dos pés, a brincadeira era não fazer barulho. Ela tinha um grande talento pra me distrair. Eu já estava adorando aquela coisa secreta, muito importante, cuidado pra não esbarrar em nada. Seu irmão não pode ir, ele é muito pequeno e eu fiquei ainda mais orgulhoso. Ele ia ver quando eu voltasse, as histórias, tudo, ele ia ver. Eu andei de avião, Tor, e ele ia chorar porque isso é o que ele fazia quando ele achava que a mamãe gostava mais de mim. Eu fui protegendo a mamãe o caminho todo, Tor, e ele ia me achar ainda mais invencível.

Chegamos, criaturinha, e o beijo na testa que eu limpei com as costas da mão. Lá era frio e o Natal era de verdade, todo branco. Posso correr do lado de fora? e ela deixou tudo. Lá, ela deixava tudo. Sorvete em vez de legume, TV até tarde. Mãe, a nossa casa é igual de desenho animado! Escada, dois andares, porão, eu era a criança mais feliz do mundo. Quando eu chegasse em casa e contasse pro Tor, era isso que eu pensava, contar pra ele era mais importante do que viver aquilo tudo.

Passou um tempo sendo assim, até bom, não sei se dias ou meses. Relógio de criança é outro, é medido em bolinhas de gude ou soldados de chumbo. E ela tinha muito talento pra me distrair. Se eu perguntava deles ela falava da nossa próxima viagem, de um passeio de barco, daquele autorama que eu gostei no shopping, da Disneilândia. Disneilândia mesmo, com Mickey, montanha russa e hambúrger todo dia. Imagina quando o Tor ouvisse isso.

Mas então aconteceu o inevitável: deixei de ser criança. Me lembro que era um dia azul e lá esses dias eram poucos. Acho que era verão porque eu estava na piscina e ouvi, vem aqui na sala, criaturinha. No sofá xadrez, dois rostos muito brancos: um, de mãos dadas com ela. O outro um garoto redondo de dentes separados que ficou me encarando.

 Esse é meu namorado, Joey, e esse rapazinho é seu novo irmãozinho William. Ela só podia estar louca, pensei, porque eu já tinha um irmão e não era aquele. Eu não queria de jeito nenhum um irmão assim. Ele é gordo!, gritei, e apanhei na hora.

Desci para o porão e chorei muito, mas não do tapa, o tapa não doeu nada. É que senti pela primeira vez uma coisa estranha, um enjôo, uma tristeza, uma vontade de ver só uma pessoa no mundo. Quando o Tor chega, mãe? Você vai trazer o Tor pra ficar com a gente, não vai? Calma, que isso é saudade e saudade sempre passa, ela explicou, chorando na minha frente. Nenhuma mãe pode chorar na frente de uma criança de 7 anos. Ela só podia estar louca.

No dia seguinte arrumei a mochila pra ir embora, não queria mais ficar ali, de jeito nenhum, chega. Entrei na cozinha muito decidido e ela cochichando no telefone. Quando é que a gente volta? E ela mandando eu falar baixo. Quando é que a gente volta? Eu queria saber. Quando, responde? E ela desligou na cara de alguém, respirou fundo e me olhou muito carinhosa: E se a gente fosse esquiar no próximo fim-de-semana, só nós dois?

Meu dedo na cara dela e as mesmas palavras muito feias que eu aprendi naquela véspera. O eu te odeio veio de mim e ela nunca mais conseguiu me distrair. 

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Coragens e covardias


A vida toda fui muito medrosa. Tinha medo de dormir sozinha, medo de chuva, medo de avião. Medo de perder meus pais, medo de filme de terror, medo de altura, de velocidade, medo de mar agitado. Quem tem medo do lobo mau? Eu tinha. Fui uma criança tão assustada que acho que eu tinha o medo em si, como alguém que sente frio. O medo puro e insuportável, como um própolis.
Curisosamente, no entanto, sempre tive fama de invencível. Meus amigos admiram minha coragem, você que saiu da casa dos pais, você que mudou de profissão, de cidade, de marido. Você que mudou  de nome.
Por ser tão medrosa e parecer tão corajosa, cheguei a achar que eu era uma boa enganadora. Uma mentirosa perfeita. Mas não.
É que, na verdade, pra mim,  medo e coragem são mesma coisa. São dois estágios de um mesmo acontecimento, o antes e o depois de uma mesma causa. Sem medo é impossível existir coragem, e não fui eu que inventei essa frase, mas adoro.
Todos os meus movimentos aparentemente decidos e corajosos não são os passos calculados e frios de um predador. Não se trata de um leão partindo pro ataque.  Se eu me jogo de alguns precipícios, se eu saio correndo quase sem olhar pra trás, se eu não uso colete de salva-vidas nas minhas histórias é por puro pânico.
Me vejo muito mais como um pássaro desastrado que se joga da árvore sem saber voar só porque um predador está vindo. Eu nao sou o leão, nunca fui, isso é só um disfarce. A vida toda eu senti como se alguma coisa me ameaçasse, uma onda enorme vindo e se eu não corresse ela ia me derrubar.
Ir em frente, decidir, pra mim, nunca foi opção. É mera sobrevivência.
Todas as vezes que me movi e promovi as tais mudanças da minha vida que todo mundo chamou de coragem foi quando ficar parado ia me matar de alguma forma.
Por isso não acredito em coragem como um estado permanente, eu duvido do corajoso em si.
Esses programas de aventura em que o sujeito se joga de caiaque de uma cachoeira a 70 metros de altura – juro - me dão sono. Se a pessoa está super tranquila em nadar com crocodilos, qual a coragem? Lamento informar, amigo, mas se você não tem medo nenhum de pular de para-quedas e faz isso todo santo dia, me desculpe, mas você não é um corajoso: é um exibicionista.
Ao passo que se você morre de medo de barata e mata uma sozinha, se tem vertigem de mar e dá um pequeno mergulho, se tem pânico de falar em público e consegue dizer um “obrigada” que seja no microfone, aí sim, você é meu tipo de corajoso. Ou um covarde, mas que faz absoluta questão de sobreviver.

domingo, 22 de janeiro de 2012

O passado dos outros

Gosto de coisa antiga. Minha cama é do século 18, meu sofá dos anos 60, a louça da minha casa foi presente de casamento dos meus pais. Não resisto a um brechó, feira de antiguidade é meu programa obrigatório em todo país que visito, só leio livro de quem já morreu e prefiro bater papo com a minha avó do que assitir ao último vídeo coqueluche do youtube.
Mas ao contrário do que parece, não sou nostálgica. O passado que eu gosto não é o meu próprio. Não tenho saudade da minha infância, prefiro ser adulta. Não queria de jeito nenhum ter 8 anos novamente.
Mudei de endereço muitas vezes nos últimos anos e em cada mudança  fui atropelada por muita coisa da minha história: uma agenda de 1997, um uniforme do primário todo assinado pelos colegas, cartões de amor eterno de amores que duraram pouco. Joguei quase tudo fora, sem pena. Não é o meu passado que me comove, mas o dos outros.
É o que eu nunca vivi que me encanta: as festas em que eu nunca fui com meu vestido dos anos 60, as casas onde minha poltrona cinquentista viveu e eu nem tinha nascido, as histórias do quarto de hotel de onde veio essa luminária enferrujada, isso sim me emociona. Nem quero saber o que aconteceu de verdade com nenhuma das minhas velharias. Tenho certeza que a realidade não chegaria aos pés da minha imaginação.
Na verdade, histórias reais me cansam um pouco. Me interesso mesmo é por ficção. Já acho chato ler biografia de gente que mudou o mundo, imagina ficar revisitando o meu próprio passado.
Veja bem: não sou desapegada. Meus melhores amigos ainda  são os da minha turma do colégio. Mas não porque eles representam um museu de mim mesma, mas sim porque estão no meu presente até hoje. Eles vieram comigo, não ficaram só lá na história, não são personagens de um álbum de fotografia. São gente de carne e osso com quem, cada ano que passa, tenho mais certeza que quero passar o resto da minha vida. Gostar deles não é uma homenagem póstuma, é uma escolha diária.
Por isso, meu querido, respondendo a sua pergunta. Sim, eu sinto sua falta. Mas não dos nossos tempos antigos, das primeiras viagens, de quando tudo começou, isso não.
 Sinto falta do que a gente teria amanhã se ainda estivesse junto. Quem você seria, quem eu seria? Qual ia ser a cara do nosso filho? Você ia ficar bem de cabelo branco? Como a gente ia lidar com a morte do nosso cachorro? Como a gente ia fazer pra continuar se amando?  O primeiro beijo eu me lembro, tudo bem, mas como seria nosso último beijo se a gente vivesse feliz para sempre?  
A história real está resolvida. É da ficção que inventei pra gente que sinto falta.
Se fosse pra ser um futuro talvez eu me animasse. Mas o que a gente foi eu já conheço, obrigada. Gosto de coisa antiga sim, mas ao meu redor, não dentro de mim.  Se é pra ter um passado ocupando meu quarto, me cobrando um ontem, me esfregando na cara algum tipo de história,  prefiro que seja minha cama Luis XV.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O impossível

Ele chegou primeiro, como sempre. O único lugar que ele tinha chegado depois do pai tinha sido no mundo. A partir daí, a espera insuportável para que finalmente acontecesse entre eles o que se exige de uma relação pai e filho, para que se desse o encanto. E nunca.

Ele não queria ter um pai com a mesma certeza que um dia o pai não quis ter um filho. Eram parecidos demais pra se suportarem. Mas a mãe, a avó, as mulheres. Mulheres insistem em tudo, principalmente no impossível.
Ele sentado tomando a segunda coca-cola sem gelo e sem nenhuma sede. Queria gostar de beber e saber ser inconveniente. Queria ter coisas profundíssimas a dizer, sentimentos esquecidos, mágoas incuráveis, mas nem isso.
Uma vez viu um atropelamento e se sentiu mal dois minutos por aquele desconhecido. Dois minutos. Depois ficou com fome e parou num Mcdonald’s. Difícil se comover com o que nunca fez parte da gente. Batata-grande, por favor.
O pai chegou suando, homens sérios gostam de parecer atrasados e importantes. Continuou falando no celular enquanto cumprimentava, enquanto sentava, enquanto pedia com gestos atrapalhados uma coca cola sem gelo.
Eram parecidos demais para se suportarem.
Ele não se importava, não esperava nada daquele almoço. A indiferença é de uma calma, de uma serenidade.
- Outra coca? - sugeriu o garçom.
- Um guaraná, por favor. Bastante gelo.
Quis mostrar ao pai que não eram a mesma coisa, que nunca foram. Mentiu.
O pai colocou uma pasta preta enorme na mesa - homens sérios carregam pastas enormes e pretas.
Não fez nenhuma cara especial, nenhuma pausa. Fez parecer a coisa mais natural do mundo. E era.
-       Eu vou morrer.
O filho riu. Rir é um refúgio.
-       É sério. Essa papelada é pra você assinar e facilitar a minha vida. Ou melhor , a sua vida. Eu vou estar morto mesmo.
Foi tirando uns papéis da pasta preta e marcando com um x vermelho algumas páginas.
 O filho bebeu o guaraná inteiro de uma vez, como se fosse uma cachaça.
-       Vai morrer de quê?
-       Uma mancha no pescoço. Acredita que ainda morre gente por causa de uma mancha no pescoço?
Ele disse isso pegando um último documento. Advogados tem documento pra tudo.
-       Deve ter jeito. Hoje em dia tudo tem.
-       Parece que não. Anda, assina. Não quero te trazer problemas.
Ele falava isso acreditando, como se a ausência de um pai pudesse livrar alguém de precisar de um pai. Como se o buraco que ele deixou pudesse ser ocupado por outra coisa, por aquele papel ou pelos terrenos que ele ia herdar.
-       Você contou pra minha mãe?
-       Porque é que você acha que eu marquei esse encontro? Podia ter mandado tudo pela internet, mas ela insistiu que isso não era assunto pra email. Você conhece a peça.
A mãe na certa esperava que a notícia fosse gerar uma grande catarse, que fosse despertar alguma paixão ancestral naqueles homens. Eles iam então se abraçar, chorar copiosamente, tentar de alguma forma alucinada recuperar os 19 anos de ausência. Iriam ao maracanã, teriam longas conversas sobre mulheres, tomariam um porre juntos.
Seria bonito, sem dúvida, mas ninguém ali tinha fígado pra tanta mentira.
O filho desandou a assinar os papéis um a um, muito eficiente.
      -   Tem que assinar esse aqui também?
Eles eram parecidos demais para se suportarem.
-       Frente e verso.
Assinou, conferiu, colocou os papéis de volta na pasta preta. O pai bebeu em silêncio a coca, o filho pediu outro guaraná. Teria sido um encontro igual a todos os outros, por pouco não foi.
Quando o pai ameaçou se levantar pra ir embora rápido como sempre, um ódio atrasado empurrou o filho, que levantou primeiro.
-       Desculpe, preciso ir.
Apertou as mãos do pai educadamente e saiu sem olhar pra trás, deixando o velho suando na pequena cadeira de metal. 
Pelo menos desta vez, desta última vez, o filho pensou, não ia ser ele o abandonado.




           









terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Duas vezes filha


Eu e minha avó sentadas na cozinha às 11 e meia. Eu tomo café da manhã, ela almoça. Ela não quer que eu coma só, pensa que eu sou uma criança. Eu não quero que ela coma só, penso que ela é uma velhinha. Estamos erradas, as duas. Estamos certas também.
A cena já se repetiu tantas vezes, mas é sempre novidade. Tenho saudade desses momentos como se eles não acontecessem há 10 anos, mesmo que aconteçam todo dia. É que eu não tenho com a minha avó conversas de velho. E nem ela tem comigo papo de jovem. Não há linha do tempo nos nossos assuntos, não existe ruga no nosso diálogo. Falamos da vida, do que nos toca, e emoção não tem tempo, não foi ontem nem amanhã. Emoção é sempre hoje.
Nesse dia contávamos as últimas novidades da família, uma família tão grande que dá pra gente se ocupar da vida deles um pouco e esquecer das nossas. E isso é bom demais, ter tanta gente que foi feita da mesma massa que eu. Eu agradeço a minha avó pelos 6 filhos que ela teve, os 18 netos, 19 bisnetos, meu Deus.
Fico triste então pelos 6 filhos que eu não vou ter porque ter filhos ficou caro e complicado demais. Imagina ter que levar todo mundo pra Disney, Iphone, tv de plasma e laptop pra tanta gente. De repente fico inconsolável por todas as próximas gerações, que vão dominar o mundo, inventar o teletransporte, implantar chips no cérebro, ter 4500 amigos no Facebook mas nunca vão ter 16 primos de primeiro grau.
Minha avó acha que eu tenho uma sorte danada de ter nascido hoje, você não sabe o trabalho que dava cozinhar sem microondas e agora essa internet tá ajudando tanta gente. E eu acho que ela tem uma sorte absurda de poder ter sido mulher e só isso, parideira, mãe, sem culpa porque culpa nem existia - ninguém fazia análise ainda.
Aproveito com pressa todo o tempo com a minha avó, minha última avó, pergunto tudo, quero saber tanta coisa. Tenho raiva de ter nascido tão depois dela. Tudo naqueles 89 anos me interessa.
- Como é que é viver tanto, vó?
De repente a voz dela embarga e vem um choro calmo. Mas choro na nossa família não é tristeza, às vezes é só uma alegria muito grande, tão grande que dói. 
-       Eu não sei. Minha vida foi tão fácil, minha filha.
Ela me chama de filha mesmo que eu seja neta, mas ela está certa. Eu sou filha também, duas vezes filha, sou mais filha dela do que minha mãe.
-       Tive 7 partos normais. Perdi só um filho. Meu casamento durou 53 anos. Quer dizer: a vida foi muito leve comigo.
Eu morro de rir e ela não vê a graça. Maria Luisa acha que é feliz porque não passou por quase nada, mas já passou por quase tudo.
Você não entendeu nada, vó, por isso eu te explico. (E ela vai me ouvir porque entre a gente não tem isso de gente nova não poder ensinar pros mais velhos.)
       -  Não foi a vida que foi leve com você, vó. Você é que foi leve com a vida.

(Para Maria Luisa Corso, que, além de um sobrenome, me deu uma família com assunto suficiente pra uma vida toda).

domingo, 15 de janeiro de 2012

O traidor


O carioca que sai do Rio vai ser sempre apontado como um traidor. É mesmo um desrespeito abandonar tanta beleza, uma ousadia achar que pode haver coisa melhor. Se mudar do Rio pra São Paulo então é caso de pena de morte. É pior que mudar de time, pior que mudar de nome. Falsidade ideológica, daí pra baixo. O primeiro dia que um carioca se sente realmente feliz em São Paulo bate uma culpa sincera. E os amigos que ficaram não ajudam: Como você pode? Logo você que amava a praia, justo você que abria a janela e ficava feliz até de estar parada no trânsito da Lagoa? Até tu?
E desandam a falar da feiúra, da grandeza, dos tons de cinza, dos engarrafamentos, das enchentes, da frieza paulistana. Como é que você foi largar isso aqui? – aponta o carioca para qualquer direção sabendo que sempre vai ter uma montanha ridiculamente bem posicionada, recortando um céu azul e uma beira do mar por perto. Covardia. E é tão difícil entender como explicar.
Mas tento. Amigos: se tem alguém que sabe como o Rio é maravilhoso é quem foi embora.  Essa praia dói mais ainda quando não se tem. Voltar pra São Paulo segunda de manhã e deixar o Rio amanhecendo pra trás é de uma violência que eu nem te conto. Todas as fotos de pôr-do-sol no Arpoador me magoam a ponto de querer sair do Instagram. E cada sábado de verão que alguém te chama para uma praia “pertinho, só 3 horas de carro”, cada “vista linda” que o paulista vai te mostrar na maior boa-vontade e que se revela apenas uma visão panorâmica para um monte de prédios – juro: a vontade de chorar não é metafórica.
“Então volta”, seus amigos falam. Fica, insistem: aqui é gostoso, quentinho, seguro. É mesmo tentador. O Rio é um colo de mãe. E os argumentos cariocas pra não se sair do Rio são os mesmos que a sua mãe usou pra você não sair de casa. Porque  ir embora, se aqui é tão bom? Você tem tudo o que precisa, casa, comida, roupa lavada. Você não gosta mais da gente?
Sim, Rio, ainda amo você profundamente. Não é você, sou eu. A gente ama os pais mas um dia precisa sair de casa. Eu me mudei de um apartamento gigantesco com vista pro pão de açúcar  pra morar num quarto e sala sem elevador com vista para uma parede. Sim, eu amava meus pais, mas eu precisava ter o meu cantinho. São Paulo parece grande, mas se você olhar de perto é só o cantinho de muita gente.
É a chance de começar uma nova história que conquista quem vem pra cá. O Rio já está pronto. São Paulo tem cheiro de cimento, barulho de prédio em construção. De um lado uma montanha de 5 bilhões de anos, de outro um terreno escrito: em breve. É o conforto do estabelecido versus a adrenalina de todas as possibilidades. Tem quem se acanhe diante de tanto desconhecido. Mas  pra mim, que aprendi a correr antes de engatinhar, São Paulo é um alívio.
Claro que dá medo sim, dá saudade,  sai caro. Tem dias que dá vontade de voltar correndo pra casa da mamãe. E eu volto. De preferência no fim de semana, cheia de saudade. Aí, até as piadas que você não achava graça ficam engraçadíssimas. Quando eu volto pro Rio, acho tudo divertido e bucólico. O serviço ruim não me atrapalha, a impontualidade fica charmosa, as eternas promessas de “passa lá em casa” tem o efeito de um abraço carinhoso.
Mas minha saudade não é o suficiente para os cariocas. “Porque você gosta tanto de lá?”, me perguntam, inconformados. Como toda mãe, o Rio é passional e exagerado. Ele te dá muito, por isso mesmo cobra uma fidelidade polarizada: ou você gosta de mim ou gosta de São Paulo. O Rio é uma mulher deslumbrante que, por isso mesmo, lida muito mal com rejeição.
São Paulo é mais humilde,  está acostumada a ser mau tratada. É feia, sim, mas tem espelho em casa. Sabe que não pode sair botando banca. Ela te pega aos poucos, vai comendo pelas beiradas. Conquista primeiro o seu conforto, depois sua simpatia. Quando você se dá conta, não sabe mais viver sem ela.  
São Paulo aceita tranquilamente ser “a outra” até porque é a outra cidade de quase todo mundo que mora nela. Aqui, como não podia deixar de ser, aprendi os tons de cinza: não existe só feio e bonito, perto ou longe, verão ou inverno. Todas as estações do ano podem acontecer em um dia e isso dá uma sensação de liberdade danada. Apesar da dureza aparente, São Paulo é muito flexivel.
“Que palhaçada! Liberdade é correr na praia de manhã”, seus amigos vão dizer – e estão certos também. A natureza do Rio te dá o horizonte como limite. Mas a sombra e água fresca causavam em mim certa preguiça de ir até lá. O Rio é uma mãe manipuladora, que manda e desmanda e você nem percebe porque é gostoso receber as ordens dela. “Vá a praia, sorria, coma direito, fica mais um pouquinho, descansa.”
São Paulo não é mãe de ninguém. Nem vem pedir colo que aqui não tem, se vira malandro. O que é que você vai fazer com essa tal liberdade?, já perguntava o pagode paulistano anos atrás. São Paulo impõe muito pouco. Ela vai ser interessante, se você for. É uma relação de parceria, tá longe de ser amor incondicional.  No Rio, basta estar ali. Aqui não. Não se vive EM São Paulo, mas COM São Paulo.
Se isto é melhor que aquilo, não dá pra dizer, nem precisa. Fui muito feliz com o Rio mandando em mim por 27 anos. Eu sentia tanta obrigação de ir a praia, que de vez em quando torcia pra estar chovendo só pra eu poder fazer qualquer outra coisa. Só um carioca pode entender esse sentimento.
 O Rio é uma linda história com começo, meio e fim e todos viveram felizes para sempre. São Paulo é assunto pra vida toda, é futuro que não acaba mais, final aberto. Se nem o meu GPS consegue dar conta de tanta atualização e novidade, imagina eu.
Quando dá preguiça de ir tão pra frente, eu voo pro Flamengo, pra vista pro mar, pra tudo que eu já conheço. Depois de uma semana volto correndo com saudade do meu anonimato, saudade de ser de fora. Taí mais uma coisa coisa boa que só um exilado pode sentir: o prazer de dizer numa mesa “sim, eu sou carioca” com certo ar de superioridade, sabendo que vai atrair algumas antipatias,  mas certamente toda a atenção do mundo.
O carioca se acha sim, e se acha porque é. É um luxo ser do Rio. Nós somos uma grife que eu, pelo menos, uso sem parcimônia, em estampas bem grandes. E o paulista, generoso que só, abre espaço pra toda essa prepotência e gosta da gente. Um paulista vê muito mais graça num carioca do que um carioca vê em outro carioca.
Mas não é esse textinho bobo que vai fazer meus amigos mudarem de ideia e me absolverem. “Quem diria, até a Patricia se vendeu,” eles vão dizer. Carioca não se enrola nem se convence, eu sei bem.  Por isso, se você sair do Rio pra morar em São Paulo, já vai sabendo: você será sempre considerado um traidor. Mas, talvez pra aliviar a culpa que ainda sinto, peço clemência ao júri: traidor não, vai. No máximo me deixa ser condenada por bigamia: sou capaz de ter dois amores profundos ao mesmo tempo.