quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Talismã


O enterro foi muito triste, como devem ser todos os enterros. Os mortos em geral são pessoas formidáveis e com Otacílio não foi diferente.
Logo ele, logo agora, logo desse jeito, era o que mais se ouvia. 
Só Dona Tetê parecia conformada:
“Se Deus quis assim, deve ter uma razão” – e todos acenavam a cabeça em concordância, o que é que se há de fazer, que Deus o tenha.
Acontece que Otacílio, de todas as pessoas, foi quem mais se preparou para viver para sempre. Desde os dez anos, quando ganhou o primeiro dinheiro vendendo um gibi para o primo, guardou toda a fortuna: 7 cruzeiros. E por aí foi. Vendeu selos, livros velhos, negociou figurinhas raras. Aos 12 anos, podia comprar uma bicicleta. Aos 16, podia comprar um carro. Aos 21, podia dar entrada num apartamento novo, “com varanda e dependência”, reforçou Dona Tetê. Mas Otacílio nunca comprou bicicleta, nem carro, muito menos apartamento. Otacílio nunca gastou nada. Ele não dava, não emprestava e não era sensível a qualquer tipo de apelo.
“É para o meu pai que está muito doente”.
“É para os estudos do meu filho, eu lhe devolvo”
“Que cuidem dos seus próprios azares”, ele pensava, “que eu já tenho o meu pra cuidar.”
O azar de Otacílio era sua mãe, Dona Tetê. Uma senhora muito conversada, simpática toda vida, que gostava de contar histórias de quando ela rica e morou na França.
“Vocês não sabem o que era a Paris dos anos sessenta...”
E o pessoal todo do Bingo fazia cara feia, realmente ninguém ali nunca tinha saído da Tijuca, quem dirá conhecido Paris. Mas desses tempos de rica ela só tinha trazido mesmo as histórias e o vício de apostar.
“Vício não, hobbie!” – ela corrigia.
O dinheiro era pouco e o pouco que havia era sempre investido em mais e mais cartelas azuis.
“É hoje, meu pequeno, que nossa vida muda.”
E beijava a bochecha de Otacílio com um batom vermelho que não saía por nada nesse mundo.
“É hoje que você vira o reizinho da mamãe”
Mas o reinado nunca viria, Otacílio percebeu cedo. E decidiu que, com ele, a coisa ia ser bem diferente. Dona Tetê desesperava com o jeito do menino.
“Essa criança não aproveita a vida, não compra um chiclete!”
Num sábado de manhã ela resolveu levar Otacílio ao Bingo. Ia ser sorteado o Prêmio Máximo, que acontecia só uma vez ao mês e podia ser um som, uma geladeira, “Ou até um conjunto de panelas”, ela contou animada ao menino. Era o grande sonho de Dona Tetê. E os dois apostando eram chances em dobro de ganhar.
“Tome aqui 10 cruzeiros. A condição é que você jogue.”
Uma única cartela. E foi assim, sem nenhum esforço, sem gastar um centavo, e muito contrariado, que em 20 minutos, Otacílio ganhou o Prêmio Máximo. Uma TV enorme, colorida, com tantos apetrechos em inglês que o locutor nem conseguia falar direito.
“Sorte de principiante”- resmungaram alguns,
“O menino é um talismã”- ouviu-se dos mais místicos
 “Eu pedi sorte e Deus mandou o Otacílio”- agradeceu Dona Tetê, certa de que ali começava uma nova era de prosperidade.
Que nada. Otacílio vendeu a TV, guardou o dinheiro e jurou que nunca mais voltava no Bingo.
“Eu deixo você faltar aula”. – ela implorava.
“Eu faço a torta de brigadeiro que você tanto gosta.”, oferecia, toda chorosa.
No final, os agrados viraram chantagens muito dramáticas, que comoviam a todos na rua. A todos, menos a Otacílio.
 “Se você não for comigo, eu me mato!”
“Vai ser com um tiro na cabeça, pode acreditar”
Nem ele foi, nem ela se matou. Com o tempo Otacílio foi ficando cada vez mais imune a qualquer ameaça. E cada vez mais rico:
“Ele podia comprar até helicóptero, se quisesse”, me contou um funcionário do banco.
Dona Tetê, por sua vez, ficava cada vez mais obstinada:
 “Eu ainda vou ser muito rica. Um guru indiano me disse isso na França, nos anos setenta. Vocês não imaginam o que era a França nos anos sessenta...”
Uma vizinha preocupada chegou a conversar com o rapaz:
“A pobrezinha anda quieta e não fala mais coisa com coisa, Otacílio”
“E quem é que quer ouvir aquelas bobagens?”, respondeu ele, muito sério, entre um cálculo e outro.
Otacílio, àquela altura, não suportava mais viver com Dona Tetê. Mas só de pensar em mudança, aluguel, eletrodomésticos novos. De jeito nenhum, era muita despesa.
“E, além do mais, ela não tem saúde para mais muito tempo, se é que você me entende”, teria confessado a um amigo mais próximo.
Otacílio já sabia até o que ia fazer com o dinheiro da herança.
“Vou guardar tudo num fundo financeiro infalível”
Numa das últimas vezes que esteve no bar, perguntaram onde ele ia gastar tanta riqueza acumulada. Otacílio desconversou.
“Vocês só pensam em gastar, será possível! Vão morrer todos pobres. Eu posso viver cem anos que vou viver muito bem”
Infelizmente, a morte chegou 2 dias depois, na porta de casa. Otacílio foi atropelado, sem chance de defesa, sem possibilidade de reanimação
“Se ainda tivesse a sorte de ser um câncer”, alguém comentou consternado, “ele podia ter os tratamentos mais avançados”
As pessoas disseram as coisas mais estranhas naquele enterro. Só Dona Tetê, que era tão conversada, ficou bem quieta. Só pensava:
“Se Deus quis assim, deve ter uma razão”
Ela já sabia a razão.
“Eu pedi sorte e Deus mandou o Otacílio”
Com o dinheiro acumulado naqueles anos, ela ia tentar o Prêmio Máximo até o último dia da sua vida.

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