segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Por acaso


Avião é o meio de transporte mais seguro do mundo. É mais fácil morrer atingido por um côco na cabeça, ou escorregando no banheiro de casa. Morre mais gente andando de carro em 1 dia do que em 1 ano inteiro, andando de avião. É verdade. Dados comprovadíssimos, divulgados pelos estudiosos mais inteligentes do mundo. Só que o medo não costuma saber de estatísticas.  Medo costuma ser muito ruim em matemática.

De qualquer maneira, é aqui que estou. Estamos aliás, eu e os outros 108 desconhecidos. Tudo o que precisamos é de uma pequena falha mecânica para nossos destinos serem unidos para sempre. Uma turbina a menos e pronto: dividiremos a mesma capa de revista, com nossas histórias sem graça, que serão enobrecidas com palavras sérias de jornalistas consternados. Estaremos todos lá: eu, este senhor de bigode do corredor, a loira com pinta de modelo e atriz que puxa assunto ao meu lado.

- Você está bem?
- Por quê? Tá acontecendo alguma coisa? Fala, pode falar, eu agüento.
- Não, é que você parece tenso. Primeira vez, né? No começo é assim mesmo, depois acostuma.

Ouço isso há 12 anos. E enquanto ele não cai, a tortura. Só me resta esperar pelo fim nesse improvável gigante de ferro, que me engole religiosa e homeopaticamente de quinze em quinze dias.

- É esse barulho.
- Qual?
- Esse zumbido. Não é normal.
- Ah, é sim. E, além disso, de que adianta se preocupar? Se cair, caiu.

Com que direito ela podia acabar com a minha vida daquele jeito? E os meus planos? Eu não plantei árvore, não escrevi livro, nem filho eu tive ainda.

- Vem muito à terrinha da garoa?
- Eu moro lá. O zumbido. O barulho outra vez. Ouviu?

A culpa era da Joana. Joana não pensou em mim quando aceitou ir para São Paulo. Eu não pensei em mim quando aceitei casar com Joana.

- Eu acho chique
- Como?
- Essa coisa toda de avião. Chegar mais cedo, fazer check in. Até reclamar da crise aérea tem seu charme.

Ela queria me distrair do barulho. Quem gosta de avião sempre vem com uns papinhos furados para distrair os sensatos como eu que sabem que aviação faz tanto sentido quanto astrologia. Mas eu não ia cair nessa. O zumbido, cada vez mais alto.

- Tinha que ver a época eu andava de ônibus. Banheiro de rodoviária, coxinha de galinha de rodoviária. Aquilo sim é que assusta a gente.

A essa altura, Joana já estaria no aeroporto. Ela seria a primeira a saber do desastre. Pobre da Joana, tão nova e já viúva. O zumbido, insistente.

- Não vai comer seu lanche?
- Escuta, você reparou na cara daquela aeromoça? Ela parece um pouco nervosa.
- Ih, fica tranqüilo, aeromoça não entende nada de avião não. Elas são tipo, como eu posso dizer, garçonetes mesmo.

A intenção da loira era boa. A intenção.

- Sei. Pelo visto você entende tudo disso aqui, né?
- Namorei um piloto. Até engraçado você perguntar. Conheci o sujeito assim, na ponte aérea. Eles convidaram umas pessoas para visitar a cabine, eu fui, a gente começou a conversar, aí já viu né...
- Enquanto ele pilotava?
- É, ué. O que é que tem?
- Parece um pouco perigoso.
- Se você achou isso perigoso, nem vou te contar tudo o que a gente já aprontou lá dentro.

Você ali, aprendendo como se desgruda uma cadeira de avião para fazê-la flutuar na água, tentando se convencer de que é seguro estar a 22 mil pés de altitude, e o piloto lá, garantindo a rapidinha da semana.

- E, além do mais, agora é tudo automático. O cara entra, aperta meia dúzia de botões e pronto. Chegamos.
- Olha, é difícil de acreditar.
- Mas pode acreditar, chegamos mesmo. Olha aí na janela.

Árvores, chão, pessoas numa escala de um pra um. É verdade, estávamos no solo novamente. Eu tinha escapado mais uma vez.

- Não disse que o zumbido não era nada?

Nem tive tempo de agradecer à loira. Desci e abracei uma Joana falante e tranqüila. Será que eu era o único que tinha noção da minha sorte?

- Trouxe as encomendas que pedi?

Pulso Ok, respiração Ok. Eu estava vivo mesmo.

- Otávio! Não tá me ouvindo?

- Eu sobrevivi, Joana. Você não entende?

- Ah, Otávio, pelo amor de Deus, que besteira. Você sabe que avião é o meio de transporte mais seguro do mundo.  É mais fácil você morrer atravessando a rua.

Ou escorregando no banheiro, jogando bolinha de gude, assistindo TV, eu sei, eu sei. Mas o medo não, ele não sabe nada disso.

- Otávio, quem é aquela loira ali dando tchauzinho para você, hein? Fala, pode falar, eu agüento.

Medos são irracionais, pessoais e intransferíveis. Cada um tem o seu. E quem não tem, traz sempre uma estatística na ponta da língua.

- Não é nada, Joana, besteira. Sabe quantas vezes eu já fiz alguma coisa errada no nosso casamento? Nenhuma. Zero. É mais fácil chover canivete. Ou eu morrer jogando bolinha de gude.

Agora era me preparar para o martírio da volta. E torcer para minha amiga modelo-manequim estar no mesmo vôo. As chances eram pequenas, se eu considerasse a quantidade de companhias e combinações de horário. Mas afinal, tinha que ter alguma vantagem em acreditar menos nos números e mais no acaso.



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