Avião é o meio de
transporte mais seguro do mundo. É mais fácil morrer atingido por um côco na
cabeça, ou escorregando no banheiro de casa. Morre mais gente andando de carro
em 1 dia do que em 1 ano inteiro, andando de avião. É verdade. Dados comprovadíssimos,
divulgados pelos estudiosos mais inteligentes do mundo. Só que o medo não
costuma saber de estatísticas. Medo
costuma ser muito ruim em matemática.
De qualquer
maneira, é aqui que estou. Estamos aliás, eu e os outros 108 desconhecidos. Tudo
o que precisamos é de uma pequena falha mecânica para nossos destinos serem
unidos para sempre. Uma turbina a menos e pronto: dividiremos a mesma capa de
revista, com nossas histórias sem graça, que serão enobrecidas com palavras
sérias de jornalistas consternados. Estaremos todos lá: eu, este senhor de
bigode do corredor, a loira com pinta de modelo e atriz que puxa assunto ao meu
lado.
- Você está bem?
- Por quê? Tá
acontecendo alguma coisa? Fala, pode falar, eu agüento.
- Não, é que você
parece tenso. Primeira vez, né? No começo é assim mesmo, depois acostuma.
Ouço isso há 12
anos. E enquanto ele não cai, a tortura. Só me resta esperar pelo fim nesse
improvável gigante de ferro, que me engole religiosa e homeopaticamente de
quinze em quinze dias.
- É esse barulho.
- Qual?
- Esse zumbido.
Não é normal.
- Ah, é sim. E,
além disso, de que adianta se preocupar? Se cair, caiu.
Com que direito
ela podia acabar com a minha vida daquele jeito? E os meus planos? Eu não
plantei árvore, não escrevi livro, nem filho eu tive ainda.
- Vem muito à
terrinha da garoa?
- Eu moro lá. O
zumbido. O barulho outra vez. Ouviu?
A culpa era da
Joana. Joana não pensou em mim quando aceitou ir para São Paulo. Eu não pensei
em mim quando aceitei casar com Joana.
- Eu acho chique
- Como?
- Essa coisa toda
de avião. Chegar mais cedo, fazer check in. Até reclamar da crise aérea tem seu
charme.
Ela queria me
distrair do barulho. Quem gosta de avião sempre vem com uns papinhos furados
para distrair os sensatos como eu que sabem que aviação faz tanto sentido
quanto astrologia. Mas eu não ia cair nessa. O zumbido, cada vez mais alto.
- Tinha que ver a
época eu andava de ônibus. Banheiro de rodoviária, coxinha de galinha de
rodoviária. Aquilo sim é que assusta a gente.
A essa altura,
Joana já estaria no aeroporto. Ela seria a primeira a saber do desastre. Pobre
da Joana, tão nova e já viúva. O zumbido, insistente.
- Não vai comer
seu lanche?
- Escuta, você
reparou na cara daquela aeromoça? Ela parece um pouco nervosa.
- Ih, fica
tranqüilo, aeromoça não entende nada de avião não. Elas são tipo, como eu posso
dizer, garçonetes mesmo.
A intenção da
loira era boa. A intenção.
- Sei. Pelo visto
você entende tudo disso aqui, né?
- Namorei um
piloto. Até engraçado você perguntar. Conheci o sujeito assim, na ponte aérea.
Eles convidaram umas pessoas para visitar a cabine, eu fui, a gente começou a
conversar, aí já viu né...
- Enquanto ele
pilotava?
- É, ué. O que é
que tem?
- Parece um pouco
perigoso.
- Se você achou
isso perigoso, nem vou te contar tudo o que a gente já aprontou lá dentro.
Você ali,
aprendendo como se desgruda uma cadeira de avião para fazê-la flutuar na água,
tentando se convencer de que é seguro estar a 22 mil pés de altitude, e o
piloto lá, garantindo a rapidinha da semana.
- E, além do mais,
agora é tudo automático. O cara entra, aperta meia dúzia de botões e pronto.
Chegamos.
- Olha, é difícil
de acreditar.
- Mas pode
acreditar, chegamos mesmo. Olha aí na janela.
Árvores, chão,
pessoas numa escala de um pra um. É verdade, estávamos no solo novamente. Eu
tinha escapado mais uma vez.
- Não disse que o
zumbido não era nada?
Nem tive tempo de
agradecer à loira. Desci e abracei uma Joana falante e tranqüila. Será que eu
era o único que tinha noção da minha sorte?
- Trouxe as
encomendas que pedi?
Pulso Ok,
respiração Ok. Eu estava vivo mesmo.
- Otávio! Não tá
me ouvindo?
- Eu sobrevivi,
Joana. Você não entende?
- Ah, Otávio, pelo
amor de Deus, que besteira. Você sabe que avião é o meio de transporte mais seguro
do mundo. É mais fácil você morrer
atravessando a rua.
Ou escorregando no
banheiro, jogando bolinha de gude, assistindo TV, eu sei, eu sei. Mas o medo
não, ele não sabe nada disso.
- Otávio, quem é
aquela loira ali dando tchauzinho para você, hein? Fala, pode falar, eu
agüento.
Medos são
irracionais, pessoais e intransferíveis. Cada um tem o seu. E quem não tem,
traz sempre uma estatística na ponta da língua.
- Não é nada,
Joana, besteira. Sabe quantas vezes eu já fiz alguma coisa errada no nosso
casamento? Nenhuma. Zero. É mais fácil chover canivete. Ou eu morrer jogando
bolinha de gude.
Agora era me
preparar para o martírio da volta. E torcer para minha amiga modelo-manequim
estar no mesmo vôo. As chances eram pequenas, se eu considerasse a quantidade
de companhias e combinações de horário. Mas afinal, tinha que ter alguma
vantagem em acreditar menos nos números e mais no acaso.
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