onde eu guardo em regime semi-aberto as pessoas e histórias que vivo ou invento.
terça-feira, 28 de fevereiro de 2012
O grande argumento
Um privilégio chegar no rio numa terça-feira. Rever a cidade que vivi a vida toda, o rio indo pro trabalho, voltando do supermercado, o rio assim mesmo, com letra minúscula, porque já é meu.
Todo mundo indo em frente apesar da praia ao fundo. A gente precisa ignorar a exuberância em volta, precisa ser superior a tanta beleza, o povo aqui é treinado pra fingir que tanto faz. Pra ter uma vida normal o carioca tem que agir como se não estivesse no lugar mais lindo do mundo.Depois perguntam de onde vem nossa prepotência. Ora, por favor.
O rio da terça-feira é o que mais adoro, o que tenho mais intimidade, é dele que mais sinto falta. Qualquer turista pode ir ao leblon sábado à noite, mas a rua do catete, o largo do machado, a praia de botafogo numa terça, essa é só de quem vive aqui.
Eu juro que não queria mais falar disso, falta de assunto ficar contando do que todo mundo já sabe, mas é que hoje fui numa reunião num dos lugares mais impressionantes que já vi na vida. Um Castelo no alto de um morro, uma vista de 360 graus para o infinito. Se fosse em Budapeste você conheceria, nossos amigos teriam indicado. Mas como é tão perto ficou pra depois. Fiquei me sentindo tão idiota por já ter passado 3 dias em Praga e nunca ter ido antes nesse lugar, que tá logo ali em Santa Teresa, a exatos 10 reais de táxi da casa onde sempre morei. E eu que queria falar de outra coisa, preciso repetir a velha ladainha: só no rio você trabalha, dá um mergulho e visita um castelo em plena terça-feira.
Admito que andava um pouco enjoada do rio de quinta à domingo, não estou pra muita badalação ultimamente. Mas esse rio de hoje, esse rio desimportante é irresistível.
O rio de terça, aliás, me lembrou porque eu tenho defendido tanto são paulo ultimamente: é que falar bem daqui é muita covardia.
Então por favor, colabore com a minha sanidade: Nunca me pergunte numa terça-feira que nem essa como é que eu consegui sair dessa cidade. Não faço ideia. E eu sei que sou a primeira a refutar esse tipo de defesa, você vai jogar na minha cara que eu mesma já expliquei isso, eu sei, quando eu voltar pra sampa eu explico tudo, faço uma planilha, assino um contrato. Mas não me cobre coerência de frente pro sol na baía da guanabara. Estar aqui é o grande argumento.
Nem sei se isso é hora pra declaração de amor, rio, afinal hoje é só uma terça, mas acredite: Toda vez que o dia começa em congonhas e termina em santa teresa eu recupero um pouco a fé na humanidade.
sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012
Precipitados
De todas as ofensas
que me fazem, uma das que menos gosto é que me chamem de precipitada. Precipitar
é agir de maneira impensada, fazer com que algo ocorra mais rápido do que
supostamente deveria. Precipitar é para os que não raciocinam, não calculam. É o verbo do desespero: apressado
portanto imperfeito.
Pior: precipitar é leviano.
Coisa de quem é superficial e rasteiro, de quem faz e não se importa.
Só que essa não sou
eu.
E de tanto ouvir que
me precipito, fui olhar a etimologia da palavra. Está lá: precipitar significa também
“fazer chegar ao fundo”. Isso mesmo, me ajude a espalhar essa boa nova: ir atrás
das profundezas também é coisa dos precipitados.
Pra melhorar, Aurélio
me veio com outra lembrança: precipitar é chover. É bem isso. Nós, os precipitados,
fazemos chuva onde não tem ainda. A gente é quem molha.
É bom sim tomar
cuidado com nossa espécie, já que podemos virar tempestade a qualquer momento. Mas
pensa bem - nada nasce no seco. A vida só começa quando alguém se precipita.
E é bonito isso de
ser chuva, não é? Quase lírico. Os precipitados somos ainda por cima poéticos.
Então da próxima vez que eu contar dos
meus castelos, da próxima vez que você não entender minha natureza e quiser me
ofender me chamando de precipitada, faça então o que você, ponderado, mais
admira: pense bem, calcule, contenha-se e consulte um dicionário.
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012
Sobre 007 e hamburgers
O bom de estar em NY é que quando
você anda nos lugares mais badalados da cidade, em vez de esbarrar com a Suzana
Vieira ou com a Luana Piovanni, você pode dar a sorte de esbarrar com o Woody
Allen, com o George Clooney. Ou com o com o Sean Connery. Aconteceu comigo
anteontem. Tá bom, na verdade não foi comigo, foi com meu primo. Com a mulher
do meu primo, vai, dá no mesmo. É que quando acontece uma coisa legal com algum
conhecido dá muita vontade de dizer que foi com a gente. Então pronto, vou
dizer, ninguém vai saber mesmo. Só você. E você não vai fazer a maldade de me
delatar pra todo mundo, vai?
Então, fica assim a história: eu
estava no restaurante quando ouvi o 007 pedindo um hamburger. Virei e era ele.
Ao meu lado. Lindo como nunca. Como sempre. Essa gente de Hollywood, sei lá,
não dá pra acreditar que eles existem mesmo.
Eu queria uma foto, um autógrafo,
qualquer coisa. Nunca entendi muito bem o que significa um autógrafo, mas ali
fez todo o sentido. Eu precisava provar que uma vez na vida, eu estive no mesmo
lugar, comendo o mesmo hamburger que o Sean Connery.
Ele pediu a conta, eu fiz o mesmo.
Quem sabe na espera pelo táxi, quem sabe ali eu poderia puxar um assunto. Uma
vez na vida nós dois, eu e Sean, estaríamos numa mesma situação chata, e
situações chatas unem as pessoas. "E esses táxis que nunca param na
chuva...", eu diria. E ele responderia algo como "Os taxistas de NY são
péssimos..". Essa foi uma fala bem ruim, ainda mais para o Sean Connery,
ele provavelmente falaria algo muito mais interessante. Talvez ele até me desse
um fora e tomar um fora dele já seria uma história para contar.
Eu poderia dizer para todo mundo
"Sean Connery? Um antipático." Adoro quando as pessoas fazem esse
tipo de comentário sobre gente famosa, julgando a criatura por aquele um
segundo, por aquele único encontro.
Eu levantei, ele ia levantar
também. Fui andando para a porta, ele já viria. Ali começaria uma inusitada
amizade ou quem sabe um grande amor. Eu ia aparecer na Caras, Sean Connery com
sua esposa brasileira. E a gente ia rir do tempo que era só uma fã querendo o
autógrafo dele. Essas coisas acontecem, não acontecem?
Mas não aconteceu. Em vez de ir
embora ele sentou outra vez e deu pra conversar com a garçonete. O táxi
demorou e aquela conversa com a menina não acabava nunca.
Meu táxi chegou. Fui embora e Sean
ficou. E esse foi o fim da história.
Pelo menos agora eu posso falar
com toda propriedade: "Sean Connery? Um amor de pessoa."
O cara ficou a noite toda
conversando com a garçonete e não é qualquer James Bond que faria isso.
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012
O porquê
Não é por obrigação que escrevo. Dizer que é por livre
e espontânea vontade também seria mentira: o texto é que move minha mão e não
o contrário.
Mas não é porque tenho muita coisa interessante a
dizer, que nada, às vezes é mesmo por pura falta de assunto. Hoje, por exemplo.
Escrever é meu jeito de puxar conversa com o mundo.
Pode ser que chamem de vaidade e não deixa de ser, sou
egocêntrica. Mas ao mesmo tempo é de um altruísmo genuíno: quero dividir. Só
muito cuidado ao se inspirar no que eu digo, posso incentivar atrocidades.
Minha intenção é fazer literatura e não dar conselhos.
Já me perguntaram se é por vingança que escrevo, às
vezes sim, já aconteceu. Mas na maioria das vezes é só homenagem. Quando minha
raiva chega ao ponto de virar ficção é porque tenho saudade.
E eu bem que poderia contar que eu sofro muito, os
melhores escritores foram homens tristes, mas não: me divirto.
Umas vezes escrevi para explicar exatamente o que
estava sentindo; outras por medo de que descobrissem exatamente o que estava
sentindo. Escrever pode ser nudez ou disfarce, depende do dia.
Escreve-se por tudo e portanto, mas a única grande
mentira é a que ouvi a vida toda: que eu escrevo porque tenho facilidade. Como se escrever fosse minha preguiça ou algum conforto. Como se eu na
verdade quisesse estudar matemática, mas pra isso eu não desse.
Thomas Mann, um dos maiores romancistas da história, disse que o
escritor é um homem que, mais do que qualquer outro, tem dificuldade para
escrever.
Então, por favor, não diminua meu carma. Escrever nos olhos dos outros é
refresco, mas pra mim é sina.
terça-feira, 14 de fevereiro de 2012
O contrário
Eu tenho que ligar
pra todo mundo. Encontrar tanta gente. Eu tenho que sair, combinar o próximo
carnaval, o próximo reveillón, eu sou de fazer planos, isso de viver o presente
nunca foi meu forte.
Eu tenho que dar
satisfação aos outros, em geral eu gosto que me cobrem, preciso que sintam a
minha falta. Quem vai, o que vai ter, que horas? Eu vou, eu quero estar em
qualquer lugar, eu e essa minha mania de ser do mundo.
Eu tenho arquitetado
muitos planos de fuga. De qualquer canto da minha casa dá pra ver a porta. Só
moro com muita janela. Eu olho pra fora, confiro a validade do passaporte.
Saber que só existe oxigênio aqui na Terra me dá claustrofobia.
Eu tenho planta,
cachorro, faço financiamento da casa própria, eu crio raiz o tempo todo mas sempre achei fácil ir embora. Não é
contradição, apenas conheço minha força: sei que aguento minha bagagem.
Qualquer coisa ponho tudo numa caixa: planta, casa, cachorro, raiz, escrevo FRÁGIL do
lado de fora (ou de dentro) e me mudo.
Eu tenho pressa.
Eu tenho que ir, eu sempre vou. Mas agora quando vou tentar sair, você
me prende. Sentado no sofá, lendo, sem me encostar, você me segura. Parado, calmo,
de longe: eu fico.
Eu tinha que fazer
tanta coisa. Sorte que hoje cedo reli Manoel de Barros: o melhor jeito que
achei para me conhecer foi fazendo o contrário.
Eu tinha que
conquistar Ásia, Europa e 17 territórios à minha escolha. Mas você só me dá
vontade de ler poesia.
domingo, 12 de fevereiro de 2012
Domingo
Sento para contar dos meus desesperos e vejo que estou
calma. Ele me desinspira. Desconstrói o meu sarcasmo, me faz achar bom o pouco,
o simples. Ri da minha complexidade, dos meus profundismos. Não cai nas minhas
armadilhas, nem naquelas que sempre funcionaram tão bem, até comigo mesma.
Ele ridiculariza minhas grandes sentenças de morte, de
impossibilidades, de não posso mais viver assim. Hoje é domingo e tem sido domingo desde então.
E não é que ele seja tolo, ao contrário. Burrice é
achar que ser profundo é a mesma coisa que ser difícil. Quem é bom em criar
problema em geral se acha um gênio, mas é só desespero. Não tem nada mais
superficial que um grito: você pode assustar todo mundo mas no final é você que
fica com a garganta inflamada.
Ele me faz calar a boca e é assim, em silêncio, que eu
gosto mais de mim.
Pode
não ter muita graça o que escrevo, mas estou satisfeita em ser ordinária. E é
tão bom que, de repente, não quero mais o desconforto como tema.
Vou inventar
um jeito de ser interessante e feliz ao mesmo tempo.
sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012
Sinceridade
- Oi, amor
- Ana, a gente precisa conversar.
- É a nova empregada, né? Olha aqui como ela arruma as
coisas. Tudo assim, verticalzinho, viradinho...Fora que ela fica pendurada no
telefone o dia todo.
- Ana, eu conversei com a Cláudia...
- Cláudia? A nova empregada não é Cleide?
- Ana, eu tô falando da Cláudia, minha psicóloga.
- Desde quando a sua psicóloga se chama Cláudia?
- Desde o dia que ela nasceu, Ana. É o nome dela.
-Não, Luciano. Quando eu te conheci você ia na
psicóloga, pagava a psicóloga, mentia pra sua psicóloga. Mas Cláudia, Cláudia
assim, sem nem sobrenome, é muita intimidade...
-Tá vendo, é isso, é impossível, você tem ciúmes até
da minha psicóloga.
-Não, não, não. Da sua psicóloga eu nunca tive ciúmes.
Eu tô com ciúmes é dessa tal de Cláudia que eu nunca ouvi falar. E que – pior –
agora é a razão pra você querer conversar comigo.
-Eu acho que a gente deve se separar.
-Você acha ou a Cláudia acha?
-Ela concorda.
-Quem essa vadia pensa que é pra acabar com o meu
casamento assim?
-Ninguém tentou salvar esse casamento mais do que a
Cláudia.
-E quem disse pra ela que nosso casamento era algo que
precisava de uma salvação?
-Ana...
-O sobrenome.
-Que?
-Eu quero saber o sobrenome dela.
-Você tá louca.
-Anda, Luciano.
-Você vai fazer o que, matar ela?
-Eu só quero falar com a pessoa. Que mal pode haver
nisso? Se ela te convenceu que a separação é a melhor coisa pra gente, quem
sabe ela não me convence também?
Ana vai até o consultório.Uma senhora de seus de 75
anos e bem gorda abre a porta.
-Oi, eu vim falar com a Cláudia.
-Pois não.
-Ela está?
-Sou eu mesma.
Era pra Ana ficar feliz, mas que nada. Mulher prefere
sempre ter razão. Ana volta pra casa com mais raiva ainda do marido.
-Você não vale nada mesmo, Luciano. Por que você não
disse que a Cláudia era daquele jeito?
-De que jeito?
-Gorda, Luciano! Velha! Ela deve ter uns 100 anos.
-Isso não tinha nada a ver com a nossa
conversa.
-Como não? Eu achei que você tava apaixonado pela Claudia. Quem é então, me diz.
-Não tem ninguém. Eu só quero pensar na
vida.
-Que novidade é essa de pensar na vida? Você nunca foi
disso.
- Eu tô sendo sincero.
- Se eu pego essa vagabunda.
-Você quer achar um culpado fora da história. Como se
aqui dentro não tivesse motivo suficiente. Quem acabou com o nosso casamento
foi a nossa preguiça, nossa indiferença, a nossa infinita capacidade de ser
óbvios. A gente é tão óbvio, Ana. Tão previsível.
Ana para pra pensar. Luciano confunde ela quando fala
bonito assim.
- Peraí. "Coitada" da Cleide?
-Ana...
-É a Cleide, né? Eu sabia. É tão a sua cara comer a
empregada, Luciano. Não vai me dizer que é com você que ela ficava pendurada no
telefone o dia todo.
Luciano desistiu de ser honesto, abriu mão de separar
e começou a comer a Cleide no dia seguinte.
Ele bem que tentou, mas sinceridade dá muito
trabalho.
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012
New York, 8 de fevereiro de 2009
No começo é bom. Uma liberdade até. Você passa e eles não
olham, não falam, não querem saber. Não é nada pessoal. Se o Brad Pitt passar
também eles não vão nem ligar. Vão dizer “excuse me” e ir correndo, ir logo,
eles precisam chegar urgentemente em algum lugar, em qualquer lugar.
Você pode se
vestir com as melhores roupas do mundo por aqui, ou com as piores, tanto faz.
Eles não vão reparar e, se repararem, você nem vai saber.
Uma amiga estes
dias cruzou com uma criatura 100% nua, genitália ao vento, passeando no
solzinho de menos 10 graus, às 2 da tarde.
E aí? - perguntei animada.
E aí o que? - Ela respondeu. Isso que dá morar muito tempo em Nova Iorque.
É que aqui tudo acontece o tempo todo, então eles não se impressionam com
mais nada.
E isso pega. Sábado de manhã esbarrei com o mesmo senhor em 3 brechós
diferentes. Um simpático senhor de seus 70 anos, moicano azul, saia xadrez,
botas pretas de cano longo e duas argolas douradas no nariz. Ele estava
procurando uma saia nova, eu também. Tá rindo do quê? Eu, hein.
Mas não são só os punks da terceira idade que se beneficiam do
blasézismo local. NY é um bom lugar para testar aquela blusa que você comprou
no Brasil e nunca teve coragem de usar
ou aquele visual super controverso que causaria alvoroço até na fila do
São Paulo Fashion Week.
Não, ninguém vai rir da sua cara, nem apontar para você
na rua. Mas se algum editor hype -trendsetter-coolhunter gostar do look, volte
na próxima estação e você vai ver várias pessoas vestidas iguais a você. Aqui
tem disso: se alguém notar sua presença, meu amigo, ou você está muito bem ou muito
mal. A tarefa é quase impossível.
Carregar uma melancia no pescoço ainda não tentei, mas carregar 3 malas
gigantes e uma TV 25 polegadas nas costas já fiz, e não funcionou. Não
despertou o interesse de nenhum rapaz bem (ou mal) intencionado sequer.
"Excuse me" por aqui não é tradução de "dá licença", mas sim de "sai da minha frente agora". Ninguém te empurra porque eles não gostam dessa coisa de se encostar, mas vai por mim: um "excuse me" novaiorquino bem dado pode jogar você longe no começo.
Eles não puxam papo no metrô, na academia, na fila do supermercado. Eles não sabem o nome do garçom nem da moça
da lavanderia, mesmo que freqüentem o mesmo restaurante e a mesma laundry por
25 anos. No começo é bom, de verdade. Mas apesar de estar totalmente apaixonada pela cidade, agora que estou aqui há alguns meses já posso admitir: tô com
uma baita saudade de passar em frente à uma obra.
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012
Por acaso
Avião é o meio de
transporte mais seguro do mundo. É mais fácil morrer atingido por um côco na
cabeça, ou escorregando no banheiro de casa. Morre mais gente andando de carro
em 1 dia do que em 1 ano inteiro, andando de avião. É verdade. Dados comprovadíssimos,
divulgados pelos estudiosos mais inteligentes do mundo. Só que o medo não
costuma saber de estatísticas. Medo
costuma ser muito ruim em matemática.
De qualquer
maneira, é aqui que estou. Estamos aliás, eu e os outros 108 desconhecidos. Tudo
o que precisamos é de uma pequena falha mecânica para nossos destinos serem
unidos para sempre. Uma turbina a menos e pronto: dividiremos a mesma capa de
revista, com nossas histórias sem graça, que serão enobrecidas com palavras
sérias de jornalistas consternados. Estaremos todos lá: eu, este senhor de
bigode do corredor, a loira com pinta de modelo e atriz que puxa assunto ao meu
lado.
- Você está bem?
- Por quê? Tá
acontecendo alguma coisa? Fala, pode falar, eu agüento.
- Não, é que você
parece tenso. Primeira vez, né? No começo é assim mesmo, depois acostuma.
Ouço isso há 12
anos. E enquanto ele não cai, a tortura. Só me resta esperar pelo fim nesse
improvável gigante de ferro, que me engole religiosa e homeopaticamente de
quinze em quinze dias.
- É esse barulho.
- Qual?
- Esse zumbido.
Não é normal.
- Ah, é sim. E,
além disso, de que adianta se preocupar? Se cair, caiu.
Com que direito
ela podia acabar com a minha vida daquele jeito? E os meus planos? Eu não
plantei árvore, não escrevi livro, nem filho eu tive ainda.
- Vem muito à
terrinha da garoa?
- Eu moro lá. O
zumbido. O barulho outra vez. Ouviu?
A culpa era da
Joana. Joana não pensou em mim quando aceitou ir para São Paulo. Eu não pensei
em mim quando aceitei casar com Joana.
- Eu acho chique
- Como?
- Essa coisa toda
de avião. Chegar mais cedo, fazer check in. Até reclamar da crise aérea tem seu
charme.
Ela queria me
distrair do barulho. Quem gosta de avião sempre vem com uns papinhos furados
para distrair os sensatos como eu que sabem que aviação faz tanto sentido
quanto astrologia. Mas eu não ia cair nessa. O zumbido, cada vez mais alto.
- Tinha que ver a
época eu andava de ônibus. Banheiro de rodoviária, coxinha de galinha de
rodoviária. Aquilo sim é que assusta a gente.
A essa altura,
Joana já estaria no aeroporto. Ela seria a primeira a saber do desastre. Pobre
da Joana, tão nova e já viúva. O zumbido, insistente.
- Não vai comer
seu lanche?
- Escuta, você
reparou na cara daquela aeromoça? Ela parece um pouco nervosa.
- Ih, fica
tranqüilo, aeromoça não entende nada de avião não. Elas são tipo, como eu posso
dizer, garçonetes mesmo.
A intenção da
loira era boa. A intenção.
- Sei. Pelo visto
você entende tudo disso aqui, né?
- Namorei um
piloto. Até engraçado você perguntar. Conheci o sujeito assim, na ponte aérea.
Eles convidaram umas pessoas para visitar a cabine, eu fui, a gente começou a
conversar, aí já viu né...
- Enquanto ele
pilotava?
- É, ué. O que é
que tem?
- Parece um pouco
perigoso.
- Se você achou
isso perigoso, nem vou te contar tudo o que a gente já aprontou lá dentro.
Você ali,
aprendendo como se desgruda uma cadeira de avião para fazê-la flutuar na água,
tentando se convencer de que é seguro estar a 22 mil pés de altitude, e o
piloto lá, garantindo a rapidinha da semana.
- E, além do mais,
agora é tudo automático. O cara entra, aperta meia dúzia de botões e pronto.
Chegamos.
- Olha, é difícil
de acreditar.
- Mas pode
acreditar, chegamos mesmo. Olha aí na janela.
Árvores, chão,
pessoas numa escala de um pra um. É verdade, estávamos no solo novamente. Eu
tinha escapado mais uma vez.
- Não disse que o
zumbido não era nada?
Nem tive tempo de
agradecer à loira. Desci e abracei uma Joana falante e tranqüila. Será que eu
era o único que tinha noção da minha sorte?
- Trouxe as
encomendas que pedi?
Pulso Ok,
respiração Ok. Eu estava vivo mesmo.
- Otávio! Não tá
me ouvindo?
- Eu sobrevivi,
Joana. Você não entende?
- Ah, Otávio, pelo
amor de Deus, que besteira. Você sabe que avião é o meio de transporte mais seguro
do mundo. É mais fácil você morrer
atravessando a rua.
Ou escorregando no
banheiro, jogando bolinha de gude, assistindo TV, eu sei, eu sei. Mas o medo
não, ele não sabe nada disso.
- Otávio, quem é
aquela loira ali dando tchauzinho para você, hein? Fala, pode falar, eu
agüento.
Medos são
irracionais, pessoais e intransferíveis. Cada um tem o seu. E quem não tem,
traz sempre uma estatística na ponta da língua.
- Não é nada,
Joana, besteira. Sabe quantas vezes eu já fiz alguma coisa errada no nosso
casamento? Nenhuma. Zero. É mais fácil chover canivete. Ou eu morrer jogando
bolinha de gude.
Agora era me
preparar para o martírio da volta. E torcer para minha amiga modelo-manequim
estar no mesmo vôo. As chances eram pequenas, se eu considerasse a quantidade
de companhias e combinações de horário. Mas afinal, tinha que ter alguma
vantagem em acreditar menos nos números e mais no acaso.
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