terça-feira, 22 de maio de 2012

Pra quem pode


Quando o amor acontece é uma arrogância não amar. Um abuso de autoridade. Quem é você pra desrespeitar esse tirano?
Não venha dizer que não está preparado, que não é a hora, que quem sabe logo mais. Só falta comer mais essas, conhecer mais um punhado de países, deixa eu me estabilizar no emprego, espera, vai? Não. Uma mulher pode até esperar, o amor nunca.
O amor é que escolhe a hora dele. O amor é quem decide, você está ali apenas pra ser atropelado.
Eu sei que de cara ele parece infensivo: um docinho de côco coberto com doce de leite numa embalagem de seda azul-bebê. Puro disfarce.
Experimenta não fazer o que o amor manda pra você ver. 
Experimenta e você vai saber o que é amargo.
O amor é um mimado e vai arranhar na sua cara esse açúcar. Vai esfregar no seu pulmão esse melzinho. Experimenta respirar, experimenta: e você sufoca.
Tira esse sorriso fácil do rosto, amar é sério e dói mais que cárie.
O amor não usa rosa, não tem rabo-de-cavalo nos cabelos, não saltita coelhinho, presta atenção.
O amor é um vândalo que anda armado até os dentes.
Um ativista que atira e explode bomba nos outros, que gosta de ver sangue.
Então ouve: não tenha raiva de quem disse que não ia te amar porque já era tarde ou porque ainda era cru. E nem perca seu tempo inventando traquitanas para destruir esse covarde - te acalma.
Esse sujeito, coitado, está condenado a uma prisão perpétua de arrependimentos, um corredor da morte eterno e a vez dele não chega nunca. 
Economize-se que o amor se encarrega e se vinga.
É uma tortura, uma maldade, mas quem mandou cometer essa insubordinação?
Ama quem pode. Obedece quem tem juízo.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Desembarque


Essa porta-automática parece que brinca de esconde-esconde com a gente.
Abriu.
É Maninho ou não é?
Se tiver olho arregalado, cabelo espetado colorido, se tiver dente de alumínio e pé torto eu sei que é.
Fechou.
Sorte de quem tem alguém esperando com placa e tudo. Club Med. Senhor Alvarez. CVC.
Abriu.
É Maninho ou não é?
Passa criança-mickey, 5 caixas de whiskey andam sozinhas, chegam duas velhas de moletom colorido, aterrisa um time inteiro de handebol.
Fechou.
É o tempo de eu morrer de saudade. Abre, gente! Esse povo não tem pena da nossa agonia não?
Abriu.
É Maninho ou não é?
Quero tanto ver meu menino que vejo. Olha ele ali. Não é. Ou é?
Fechou.
Dá licença, criatura, sai da frente, homem, veio todo mundo aqui hoje só atrapalhar minha vida, será possível.
Abriu.
É Maninho ou não é?
Agora é. Só que essa porta é mágica que ano passado deixei aqui um garoto e agora me entregam esse marmanjo embrulhado num terno.
É Maninho ou não é?
O cabelo não tem mais arrepio nem cor de papel crepom, o dente não é mais prata. Mas o jeito de coçar a cabeça é o mesmo se você reparar, repara que é.
Maninho!, eu chamo.
Ele me abraça pesado, mas pede. Maninho não, vó, é Manuel.
É Maninho ou não é?
Deixa ele pensar que não. Pra mim sempre vai ser.


quarta-feira, 16 de maio de 2012

Jaboticaba


Foi meu filho quem matou o travesti. Uma Marilyn Monroe preta de seu metro e noventa. 
Só não foi do jeito que eu ensinei, compreende? Isso é que me tira o sono. 
Vieram me contar pra que eu sentisse pena, essa gente é engraçada. 
Pena de um homem daquele tamanho. Se quisesse respeito o negão não usava saia rodada, concorda? 
De onde eu venho quem tá buscando apreço carrega faca e não batom vermelho 
numa bolsa prateada. Um dia ainda pequeno meu menino veio com essa:Pai, e homem pode beijar 
outro homem? Tomou logo um tapa na orelha desse que deixa tonto que é pra não esquecer. 
Aquela merda de bairro tinha de tudo, gente muito misturada. 
Eu falei pra Solange mandar ele pro interior, não queria filho meu aprendendo imundice. 
Mas aquela ignorante. Ele cresceu ali no meio, por isso eu tive que explicar tudo: Não se mexe 
no que é de Deus,  Justino, não se brinca. Eu sou uma pessoa muito religiosa, o senhor entende? 
Falei pra ele que homem que é homem não chora, não mama, não ama. 
Homem que é homem faz tudo é com mulher. Lambe, come, sustenta, bate quando precisa. 
E burro ele não era, porque aprendeu. Teve dois ou três quebra-pau no bar e foi o meu Justino
 que endureceu, que expulsou as bichas com pontapé, e ainda quebrou uma lâmpada na cara 
de uma que era bem abusada e gostava de relar nos homens. (A magrela perdeu uma vista
 e passou a usar tapa-olho colorido, cada dia de uma cor. Bicha faz piada de qualquer coisa, 
ri de tudo que é desgraça e isso é que dá raiva.) Essa mesma me encontrava e me chamava de tio, 
porque eu vi essa molecada crescer, entende? Com a tal da Marilyn foi desse jeito também.
 Na época ele era só o Jabuticaba, um neguinho safado que garrou amizade com meu Justino, 
comia lá em casa todo dia. Os dois brincavam de matar pombo e espiar revista de mulher pelada 
que eu dava escondido, coisa de moleque. Depois roubavam carro só de pirraça pra bater pega
 na Avenida Central, coisa de garoto. Quando criaram pentelho fizeram economia pra comer 
a mesma puta, coisa de homem. Quem conhecia achava que era irmão, mesmo sendo um preto
 e um branco, pro senhor ver. O povo falava, mas o povo fala, não fala? O povo tem fome pra 
assunto besta.  Mas não, o meu Justino não, ele nunca. Tanto que o Jaboticaba deu pra falar mole, 
e o meu Justino não gostou. Depois o preto descoloriu o cabelo e começou a fazer ganho na praça. 
Ainda zombou do meu filho porque tava ganhando mais que ele no supermercado. 
Os dois caíram no cacete ali mesmo e nunca mais se falaram. Jaboticaba deu o rabo pra tudo 
que é homem encapetado daquele fim de mundo, mas o senhor veja como é a vida: meu menino
 foi quem pegou a doença maldita. Não me pergunte como, o povo fala, mas o povo sempre fala. 
O meu garoto que sempre foi corpulento ficou que era osso puro. E ninguém mais queria ir lá 
em casa, o bar não servia do mesmo copo e o Padre Ivo pediu com muita educação pra gente 
não levar o menino na missa que espantava os fiéis.  Essa doença não passa assim não, 
mas aquela gente é chucra, como eu falei pro senhor. O Justino ficou abandonado em casa 
esperando morrer, feito bicho sem raça. Não queria saber de conversa com a gente, começou 
a rezar dia e noite, só sabia pedir perdão pra mim. Dormindo às vezes ele delirava e chamava
 o Jaboticaba. Aquilo me dava pena, o senhor entende? Então eu liguei pro pretinho safado
 e mandei ele aparecer em casa pra ver se Justino reagia. O criolo tava grande, maior ainda,
 não sei se era o salto ou a peruca que dava essa impressão. Uma Marilyn Monroe preta 
de seu metro e noventa. A loira entrou no quarto do Justino e eu ouvi a porta trancando. 
Vinha um barulho seco, coisa de homem se entendendo. Deu meia hora, deu hora e meia e nada. 
Eu tava pra chamar o padre ou a polícia, tanto faz, o que viesse primeiro. 
Foi quando Jaboticaba saiu do quarto com olho roxo, sem os cachos dourados. 
Ele chorava que nem quando era menino e gritava que tinha que se lavar, pedia água, deixa 
eu me lavar que Justino me passou essa desgraça. Ele me comeu, tio, ele me comeu 
e foi embora tropeçando aqueles pés de gorila pra fora da sandália. Eu não ia morrer sozinho, pai, 
o senhor entende? O preto era forte mas durou menos que meu menino. Justino, coitado, 
tá vivendo pra passar essa vergonha de ser preso. Foi meu filho que matou o travesti, moço, 
pode escrever aí, que isso não devia ser crime e muito menos pecado. Mas como disse pro senhor,
 se ainda tivesse sido com tiro ou uma facada no estômago, se ainda fosse de porrada. 
Isso é que me tira o sono.


quarta-feira, 9 de maio de 2012

coisa preferida

-       Da sua temperatura.
-       Mas e o olho?
-       É interessante.
-       O pé?
-       O pé é bom também. Mas a temperatura.
-       Nunca ouvi falar disso.
-       Do que?
-       Da pessoa gostar da temperatura do outro.
-       E daí?
-       Pensei que você ia falar do cabelo.
-       Seu cabelo é tão bonito que me dá até medo.
-       Olha as coisas que você diz.
-       Você me acha estranho.
-       Nunca.
-       Não foi uma pergunta.
-       Eu gosto de você ser de outro jeito. Eu amo.
-       Eu acho que eu uso errado o meu amor.
-       E tem jeito certo?
-       O problema é que eu já gosto de você há tanto tempo.
-       É bom porque aí você já sabe gostar de mim.
-       Eu sei gostar de você e não ter você. Gostar e ter é outra coisa.
-       É melhor?
-       É só outro planeta. Eu vou me acostumar.
-       Leva um casaco, tá frio.
-       Perto de você é sempre morno.
-       Perto de você é sempre hoje.
-       Vou lá embaixo, já volto.
-       Espera, só mais uma coisa: uma girafa.
-       Onde?
-       Você falou que gostava muito de girafa e baleia e perguntou se eu preferia ser uma ou outra.
-       Girafa dorme vendo filme?
-       Acho que não. Elas só dormem duas horas por dia.
-       Tá, então faz assim: continua sendo você pra sempre.

Uma girafa pode atingir até 50 quilômetros por hora mas ela ficou ali bem quietinha, com seus 37 graus centígrados, esperando ele voltar.