terça-feira, 11 de setembro de 2012

Amaciante


Difícil apontar ao certo o que a transformou em rocha, mas ela deconfia do amaciante de roupas.
A embalagem ensinava que o produto amolecia de tudo, mas com essa mulher deu-se o contrário.

Começou na palma da mão, como uma alergia. Criou casca. Não demorou pra tomar a língua, pâncreas, tubo digestivo. Quando se deu conta já tinha o DNA de uma montanha.

(Uma pequena felicidade: o spray de banheiro só matava 99% dos germes. Achava engraçado toda vez que lia essa frase e sorria pelo 1% de germes que poupara do terrível destino.)

Outro dia como todos. O homem sentou ao seu lado, puxou conversa com os joelhos, desligou a TV.
-Hoje é dia de dormir com ele – fez as contas - uma quarta. O ano tem 48 quartas, concluiu a matemática. E abriu as pernas.

Ficar ali não era nem ruim, era só uma espécie de morte: solitária e obrigatória. Beijaram-se eternos, dois cadáveres. Mas pelo menos era pra sempre. 

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Delicadeza


A delicadeza é de uma inutilidade ímpar.
A inutilidade deve ser, aliás, o princípio de qualquer delicadeza.

Delicadeza com objetivo é interesse.
Delicadeza que tem qualquer serventia é favor.

Delicadeza se confunde com outras boas intenções, mas não se engane:
Doar 100 milhões para uma escola pobre depois de uma enchente é caridade
Ceder lugar no ônibus para um velho é educação
Abrir a porta do carro para uma conquista é exibicionismo

A delicadeza não é disso, ela é discreta.
Pequena e tímida -
Um arco-íris que só aparece quando ninguém está olhando.

A delicadeza não sobrevive de aplauso.
A delicadeza não sobrevive ao aplauso.

É uma virgula bem colocada, que não muda em nada o texto: só faz a história ficar mais macia pra quem ouve.

A delicadeza é tão desnecessária que quando o receptor do seu gesto disser :“ah, não precisava”, isso deve ser verdade. 
Não precisava de fato, mas foi feito mesmo assim.

A delicadeza está em tudo que é poético e barroco:
uma carta escrita a mão
as bodas de Ouro
o silêncio.

E  pode estar também em tudo que é absolutamente ordinário e urbano:
um sinal de trânsito,
uma fila de supermercado,
o elevador do prédio

A delicadeza sobrevive em qualquer habitat por isso é curioso que ela seja tão rara.

Existem manuais de como sobreviver na selva,
como proceder em caso de incêndio,
como agir em caso de despressiurização da cabine.

Mas não há literatura que ensine o sujeito a ser delicado.










quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Sorria, você está sendo filmado.


Roteiristas que escrevem para TV não assistem  TV 
( somos tão inteligentes e pedantes!)

Diretores de cinema brasileiro não gostam do cinema brasileiro
(viva aquele cineasta iraniano obscuro e estreante!)

Escritores jovens não lêem escritores jovens.
(os dramas das gerações passadas ficam sempre mais interessantes.)

Atores de novela queriam mesmo era estar no teatro: Ulysses, Shakespeare, Otello, Medeia!
Atores de teatro sonham com um papel na novela  - pelo menos assim ia ter alguem na plateia.

Atrizes jovens engordam para  ficarem feias e finalmente serem reconhecidas como grandes atrizes
Grandes Atrizes retalham a pele mole e posam nuas e contorcidas para finalmente serem reconhecidas como jovens.

Ficou combinado: nos programas de ficção o improviso é bem-vindo;
nos reality-shows tudo é ensaiado.

A tela está cada vez mais 3D, HD, cada vez mais realista.
(O mesmo já não se pode dizer dos peitos inéditos da modelo-atriz-apresentadora- protagonista).

O mundo do entretenimento se leva a sério mas é uma piada de humor negro e rimas pobres.
(Ninguém ri que é pra não aparecer com ruga no horário nobre.)









segunda-feira, 6 de agosto de 2012

vingança


A vingança é um prato que se come frio;

congelado.

Uma massa sem graça, sem molho, com gosto de ontem.

Cheia de conservantes químicos cancerígenos pra esconder que já está podre e nasceu morta.

A vingança contém glútem.

Não vale por um bifinho, não nutre.

Mata e engorda.

A vingança derrete no calor fingido das suas microondas magoadas e até engana que é saborosa.

Mas ela é borrachuda e não desmancha na boca;

não dissolve nem na saliva mais ácida.

A vingança é um prato que se come frio:

congelado.

A vingança é uma lasanha da Sadia.

Esquecer sim que é fitoterápico. 

terça-feira, 24 de julho de 2012

seres abissais

Não somos leves
Boiar não é nossa natureza
Emergir não é nosso ímpeto
Tentamos a superfície, mas oxigênio nos asfixia.

Mergulhar, no entanto, é fácil:
Temos chumbo nos pés

Somos náufragos de nossas histórias.

Monstros marinhos

Desajeitados e profundos
Simples e primitivos
Abissais

Mas somos de verdade, ao menos, somos concretos
Quase pedras

Ou somos também o contrário disso: transparentes
Nós e nossos tentáculos luminosos tentando enxergar o futuro
Em vão 

Somos cegos

E nem a ciência sabe o que une nossa espécie, amor
Não há quem desvende nosso ecossistema.
Mas eu suspeito:

É que lá embaixo
Onde tudo afoga
Onde a maioria morre

Na ginga eterna e repetitiva do oceano
No escuro, no silêncio

Sozinhos

A gente dança.


quinta-feira, 21 de junho de 2012

Dinossauro

Um:
Já é quase todo de mentira.
Dente de resina, tubo de plástico pra ser traquéia, uma máquina é que respira.
Em vez de rótula, pino, em vez de osso essa massa esponjosa.
O coração só bate quando é lembrado por um remédio colorido.
Até o rim veio emprestado de uma menina morta.
O corpo todo já desistiu, só as sinapses insistem.
 O aparelho no labirinto é pra ouvir qualquer coisa dos que vivem de verdade: ele finge.
Outro:
Chega esbaforido, tem pressa.
Tudo nele é de verdade e músculo.
Gordura, fluidos, vesícula, garganta, cuspe. Ele engole. 
Suas células gordas se reproduzem como se fosse pra sempre.
Este homem funciona sozinho.
Assim, desobrigado de existir, ele pode até ter sentimento e tem:
“coitado desse velho".
Distraído de funcionar, o homem verdadeiro pode pensar em tudo, até em usar um boné.
O homem de mentira então arrasta o dedo pro buraco na garganta e inventa uma voz metálica.
-       Tira esse boné pra falar comigo, moleque. Me respeita.
O homem de mentira não tem mais corpo nem tempo, mas esbanja história e exala genética. Alguém duvida da força de um dinossauro?
O homem de verdade então cala e entende o seu tamanho: ele vai ser sempre pequeno como um filho. 

terça-feira, 12 de junho de 2012

alcachofras são paroxítonas



-       Uma alcachofra.
-       Como assim alcachofra?
-       A alcachofra é uma flor, você sabia?
-       Ninguém dá alcachofra de presente pra namorada.
-       A gente não era namorado.
-       A alcachofra era uma não-flor para uma não-namorada. Entendi.
-       Depois a gente saiu pra jantar.
-       Ele tem cara que pede vinho caro.
-       Ele pediu chá.
-       Quem é que janta chá?
-       Aí ele pediu um carnaval.
-       Justo.
-       Aí ele pediu minha mão.
-       Nunca achei que eu fosse te ver assim, de noiva.
-       Nunca achei que eu fosse me ver assim de novo.
-       Isso só acontece em novela.
-       E a gente nem vê novela.
-       É coisa de fim de filme, sabia?
-       Eu sempre durmo no começo dos filmes.
-       Ele te acorda?
-       Melhor: ele me deixa sonhando.
-       Mas e a realidade?
-       Experimenta colocar uma grinalda.
-       Vocês não foram rápido demais?
-       Aqui  não tem radar.
-       Será que não é muito cedo?
-       A gente não usa relógio.
-       Mas e os divórcios? As dúvidas? As estatísticas? E a ciência? A matemática? A lógica?  E a última? E a próxima?

   (Deixa o mundo gritar suas proparoxítonas todas agudas e acentuadas, amor. Deixa que alcachofras são raras, mas não tem acento nem hífen).