sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Um toboágua dentro de casa


A maternidade é uma coisa, o filho é outra. Gostar do filho é fácil. Ele é arredondado, engraçadinho, cacheado e se parece com você.  O filho você vai amar profundamente e cada dia um pouco mais como num namoro adolescente e obsessivo. A maternidade você vai amar, odiar, achar ok, achar chatinho, querer pedir demissão às vezes.

Filho é fácil de gostar até quando é dos outros, até quando é filho de panda, elefante ou porco espinho. Filhos são adoráveis, dá vontade de ter uns 3 por dia.

A maternidade é diferente. A maternidade é o trabalho que vem junto com o filho. Um trabalho físico,químico, psicológico, biológico, sociológico, 24 horas por dia 7 dias por semana.

Amar o filho não quer dizer que você vá gostar na mesma medida da maternidade.  É como se, por gostar de dar uma nadadinha na praia numa manhã de sol, você tivesse que gostar de acordar 5 da manhã todo dia pra fazer mil metros borboleta na piscina gelada de um clube e competir nas Olimpíadas. Como se por gostar de viajar, tivesse que construir um Boeing 747 por semana. (Ok, não é bem assim, até porque existe faculdade pra construir avião e treinador pra quem quer ser campeão de natação. Ser mãe é sempre uma atividade amadora, mas de alta periculosidade.)

Gostar do filho o tempo todo é natural, gostar da maternidade de segunda a segunda acho impossível. Pra isso, uma mulher teria que ao mesmo tempo curtir cozinhar, desenhar, jogar futebol, apreciar patati patatá, achar divertido limpar cocô, dar banho, debater 3 horas sobre a cor de uma meia e achar delícia dormir 4 horas por noite. Tem dias que tudo isso funciona não sei como - e é até bom. Tem outros que deus me livre. Eu mesmo quando publicitária devo ter feito umas mil campanhas de dia das  mães sobre a maravilha de ser muitas mulheres ao mesmo tempo! Maravilha pra quem?

A dúvida é: por que não nos contaram isso antes? Mãe, vó, tias, alou? Não me venham dizer que os tempos eram outros, que lavar fraldas de pano à mão era gostoso e birras foram inventadas com o Xou da Xuxa em 82 . Nem vem. É que não é fácil assumir, eu entendo. Mães não gostam de admitir fraquezas, mas nos perdoem: somos atletas de alto impacto, surfistas de ondas gigante, soldados de nossas guerras particulares. O treinamento é meio Bope e você pede pra sair e não pode. A gente acaba se convencendo e divulgando que dá pra levar de boa, respira fundo e engole que é mais fácil. Será?

Sei não. Me custou muita culpa entender essa separação do que é o filho e  do que é o trabalho de ser mãe, mas valeu. Hoje assumo mais tranquila crimes hediondos como não gostar de brincar de Lego e achar chatíssimo pique-pega americano. Tá tudo bem: a criança está experimentando o mundo; eu cheguei há 35 anos e já escolhi  o que gosto ou não. A maternidade é uma chance de rever escolhas, é verdade, mas as vezes você revê e acha chato pra cacete mesmo.

Pras amigas que não sabem se querem ter filhos, geralmente recomendo que repensem mesmo e muito.  O trabalho é tão duro e pouco recompensado que vez ou outra penso pra quem eu posso ligar pra reclamar, um serviço tipo do Uber que você aperta 4 dígitos e é ressarcido generosamente sem grandes questionamentos.

Só que  a natureza é perfeita mas é também muito pouco democrática. Pelo menos no primeiro filho, você assina o contrato vitalício sem conhecer as regras.

Não é mentira que te transforma, mas um caminhão passando em cima de você também te transformaria.
Não é mentira que te torna um ser humano melhor mas 5 anos de prisão também podem ter esse efeito.
Ok menos. Só quero dizer que não é sempre bom. Que pode ser até muito ruim de vez em quando. E tudo bem.

Sei que a obrigação de amar a maternidade deve vir de longe na nossa história ou talvez bordada em crochê em forma de coração no nosso DNA. Deve ter servido  pra alguma coisa importantíssima na evolução humana, sem dúvida nos salvou de tigres dentuços que já devem estar extintos. Mas hoje, em 2016, acho mais saudável poder admitir que esses templates maternais rosados de Instagram com dizeres de incentivo, essa cobrança da maternidade prazerosa e delicinha afasta mais as mães dos filhos do que o contrário.

Não seria bom que meu filho conhecesse minhas limitações antes de descobrir e esgarçar todos os limites? Que ele entendesse que não, não sou tudo, não posso tudo, não quero nem amo tudo que é necessário pra ele estar aqui?

Eu entendo que  empoderamento pra algumas mulheres possa ser largar um cargo de CEO de Multinacional só pra fazer esse trabalho. Discordo de quem diz que a maternidade é um cargo como outro qualquer, mentira: é mais. É questão de vida ou morte e envolve  a sua continuidade nesse mundo. Que outra posição envolve riscos tão altos?

Pra outras mulheres, no entanto, optar por terceirizar algumas etapas do trabalho maternal também faz sentido para manterem a sanidade, a felicidade ou a vaidade, no bom sentido.
 E também vale escolher não ser mãe e não passar por isso nunca, não por medo ou fraqueza, mas por preferir viver a vida de outro jeito. Nunca serão menos mulheres por isso.

Inacio meu amor não me entenda mal: filho  é a  coisa mais divertida que você pode fazer nesse planeta. É como ter um toboágua dentro de casa, todo dia tem sua emoção e sua gracinha.

Já  a maternidade... bem, na minha humilde opinião existem empregos mais bem pagos e com direto a férias e aposentadoria.

6 comentários:

  1. Querida!!!!!! que tudo.....não sou uma mae tradicional, o amor não nasceu a primeira vista, foi construído...não tenho paciência, me sinto esgotada, cansada, de mal humor...e isso não tem nada a ver com o amor que sinto pelo meu filho...Finalmente encontrei alguém que me entende...já fui inúmeras vezes criticada, massacrada por não amar a maternidade...e muitas vezes me sinto culpada, chateada, por que não consigo "me mudar" ser menos egoísta e não ter vontades, tipo viajar sozinha, me arrumar e sair pra jantar sem pensar onde deixar o pimpolho....obrigada por dividir esse texto...me sentindo melhor e menos culpada...um beijo. Eliane

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  2. que texto bonito.

    tenho 31 anos e, como você deve imaginar, sofro alguma pressão (sendo bastante sutil) p'ra mudar a decisão, que perdura ao menos até o momento, de não ser mãe - justamente por desconfiar que amaria demais um filho, mas não o que vem com ele.
    acho incrível a coragem que vocês, mães (especialmente as que optam pela maternidade), têm. fazer algo sem saber se irão gostar da tarefa, que durará o resto de suas vidas, inexistindo a possibilidade de voltar atrás. não consigo pensar em nada mais forte que isso.

    minha mãe não queria sê-lo. teve duas filhas porque, da forma e no tempo em que foi educada, não havia lá muita opção. hoje conversamos sobre isso abertamente e me sinto aliviada - além de amada, sempre.

    Inacio tem é sorte. :)

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  3. Que bom te ler! Você conseguiu escrever meus sentimentos. Não é fácil e muitas pessoas não entendem. Dizem: "todo mundo passa por isso, é normal!" Mas o fato de ser normal não torna as coisas melhores. Já cheguei a confundir meus sentimentos para minha bebê com a raiva imensa que sinto ao ter que ficar 24 horas por dia alerta sem me alimentar direito e em privação de sono. Mas aí ela sorri. Linda! A amo, mas não gosto de maternar todo dia ininterruptamente.

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  4. Lindo Texto... Parabéns por expor tão delicadamente questões tão profundas, mais comuns do que se admite e...polêmicas. Forte abraço e muita Luz prá você.

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  5. Muito bom o texto. Sou mãe de duas meninas, de 5 e 7 anos e acho que realmente as pessoas estão complicando demais as coisas. Também tenho muita informação, procuro não dar glúten, não deixo ver televisão... mas não sinto esse peso da maternidade. Se um dia não tiver outra coisa pra comer... tudo bem comer glúten, se precisar de um tempo...tudo bem ver um pouco de TV... Nós sobrevivemos... rs
    Mas acho que o mais importante é não achar que as crianças precisam de atenção o tempo todo, de eventos, ir a todas as festas... ufa! Criança pode brincar sozinha, ficar em casa sem fazer nada, não ir a alguma festinha. A frustração e a solidão fazem parte da vida e do aprendizado deles. Tenha menos culpa e leve as coisas com mais leveza. As crianças não precisam da melhor alimentação, da melhor escola, do melhor passeio... precisa brincar e ser amada.

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