sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O sapo


Para este estava bom como estava e tudo deveria ser bem como era. Ele, por exemplo: masculino, 45 a 60 anos, branco, 0 a 2 geladeiras em casa, sem filhos. Essa múltipla-escolha já escolhida por alguém há muitos cem anos, que no fim das contas permitia sim juntar no mesmo pote o Harrison Ford, pessoa mais importante do mundo na opinião desse homem - com o seu Andrelino, porteiro manco da vida inteira do prédio.

Ele pensava muito no seu Andrelino, gostava de ter um carinho pelo pobre coitado de rosto murcho e um sorriso de gengiva. Tinha pena as vezes do velho porque pensava que todo mundo no prédio tinha uma vida, saía e entrava e só o Andrelino ficava ali parado, abrindo e fechando a porta.

Outras vezes achava o contrário e tinha pena de si mesmo, correndo de um lado pro outro, e na verdade só o Andrelino é que decidia qualquer coisa, que escolhia se a gente ia entrar ou não em casa, só o Andrelino enfim  é que era como um Deus e os condôminos éramos todos só invenções pra distrair a vida dele.

O Andrelino era esquecido e sempre perguntava da Antonia e isso era o outro parênteses da múltipla-escolha do nosso homem: Viúvo. Que ele achava pior que ser divorciado, mas melhor que ser solteiro - pelo menos servia pra mostrar que algum tipo de vida ele se atreveu a ter.

A Antonia não era uma mulher dessas que se sonha, uma mulher doce ou pelo menos forte, era só uma mulher com seus destemperos e um corpo mais pra redondo, que cozinhava bem. A Antonia gostava de outro, e ela falou isso desde o começo, fico com você mas se o outro chamar de volta eu volto, é dele que gosto.  Mas o homem pensou que talvez fosse bom, talvez fosse até melhor assim, que ela não gostando não importunava e ele podia continuar sendo sozinho mesmo estando com ela.

Só que o outro nunca mais veio e eles de algum jeito se cuidaram, que na falta de amor cuidado até que serve. E chegou a ser bom, chegou mesmo, teve um Natal que chegou a haver um tipo de carinho. Ela fez uma torta de nozes que dava um grande trabalho, uma receita da televisão e mesmo sabendo que ele não ligava pra nada perdeu ali um dia inteiro cozinhando, amassando as nozes, quebrando a casca dura, fervendo leite.

Uma torta de nozes cheirosa e perfeita sem plateia: uma coisa inútil daquelas só podia ser amor.  Ele não podia com doce mas ela explicou que era a comida preferida do outro, do homem que ela gostava de verdade, e toda vez que ela fazia achava que ele podia voltar.  Aquilo não deu raiva nele, deu foi até pena, e ele provou um pedaço e rezou secretamente pra que o outro voltasse logo. Mas reza de quem nunca foi a Igreja não vinga então a torta pegou foi mofo na geladeira e antes do reveillon estava no lixo. Nunca mais teve doce naquela casa.

Ele, o nosso homem, era um homem bem doente e pensava em morrer logo pra Antonia poder ter algum dinheiro pra ser feliz. Só que ela apanhou foi um tumor do tamanho de um novelo de lã no pulmão. O pior é que o médico usou essa imagem e ela nunca mais conseguiu fazer os sapatinhos de lã pra quermesse. A pobre olhava pra lã e pensava no tumor engordando nela, jantando os fios coloridos e trançando dentro dela pra aumentar a doença.

Mas não botei nunca um cigarro na boca, ela choramingou, e o doutor explicou que nada adiantava esse argumento contra a vontade de deus que Ele quando cisma com uma coisa vou te contar. Deus cismou de matar a Antonia com o novelo de lã e o corpo desistiu rápido e obediente parecendo que tinha ouvido o médico.

Ele voltou então a ser só um homem e não que isso fosse mais difícil, era de novo aquela pequena dor de se acostumar a todas as coisas. O bom é que ele teve que organizar caixão e velório e isso era mesmo uma coisa que ele recomendaria a qualquer um. Cuidar da morte da Antonia fez ele achar a morte uma coisa muito boba, um procedimento burocrático que poderia ser feito por qualquer idiota.

Ver a morte de perto, explorar suas entranhas, esmiuçar suas pequenas tripas como uma criança faz com um sapo na aula de ciências, acabou com todo o mistério. É que por menor que seja a vida, o homem entendeu, ela vai ser sempre maior do que morte. Porque se até a vida da Antonia parecia tão maior do que um sapo dissecado e seco na tábua de aço, imagine a de alguém importante, imagina a do Harrison Ford, por exemplo.

Pro azar da humanidade, nosso homem era então o primeiro homem do mundo que tinha entendido a morte, logo quem.  E ele bem que podia ter ido na Tv explicar pra toda gente, ou até escrever um livro e assim quem sabe ia até aparecer entre aspas em alguma revista em inglês e um dia, imagine, podia ser até que o Harrison Ford achasse ele um homem importante. Se ele quisesse, podia acabar com esse grande medo de todos, acender a luz e desmascarar esse imenso fantasma, podia sim.

Mas ele não queria mudar nada, pra ele estava bom como estava e tudo era bem como deveria ser. Bom dia Andrelino e o velho abriu o sorriso de gengiva e perguntou da Antonia e ele já ia lembrar de novo da desimportância do Andrelino e da morte e dessa bobajada toda quando graças a Deus lembrou que estava faltando sabão em pó e leite.

Já no supermercado, seu lugar preferido do mundo, finalmente o homem pode voltar a se preocupar com o que realmente importa, que era lavar a roupa e alimentar esse sapo gordo que um dia vai estar escancarado e frio em cima da mesa. 

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