Para este estava bom como estava e
tudo deveria ser bem como era. Ele, por exemplo: masculino, 45 a 60 anos,
branco, 0 a 2 geladeiras em casa, sem filhos. Essa múltipla-escolha já escolhida
por alguém há muitos cem anos, que no fim das contas permitia sim juntar no
mesmo pote o Harrison Ford, pessoa mais importante do mundo na opinião desse
homem - com o seu Andrelino, porteiro manco da vida inteira do prédio.
Ele pensava muito no seu Andrelino,
gostava de ter um carinho pelo pobre coitado de rosto murcho e um sorriso de
gengiva. Tinha pena as vezes do velho porque pensava que todo mundo no prédio
tinha uma vida, saía e entrava e só o Andrelino ficava ali parado, abrindo e
fechando a porta.
Outras vezes achava o contrário e tinha
pena de si mesmo, correndo de um lado pro outro, e na verdade só o
Andrelino é que decidia qualquer coisa, que escolhia se a gente ia entrar ou
não em casa, só o Andrelino enfim é que
era como um Deus e os condôminos éramos todos só invenções pra distrair a vida
dele.
O Andrelino era esquecido e sempre
perguntava da Antonia e isso era o outro parênteses da múltipla-escolha do
nosso homem: Viúvo. Que ele achava pior
que ser divorciado, mas melhor que ser solteiro - pelo menos servia pra mostrar
que algum tipo de vida ele se atreveu a ter.
A Antonia não era uma mulher dessas
que se sonha, uma mulher doce ou pelo menos forte, era só uma mulher com seus
destemperos e um corpo mais pra redondo, que cozinhava bem. A Antonia gostava
de outro, e ela falou isso desde o começo, fico com você mas se o outro chamar
de volta eu volto, é dele que gosto. Mas o homem pensou que talvez fosse
bom, talvez fosse até melhor assim, que ela não gostando não importunava e ele
podia continuar sendo sozinho mesmo estando com ela.
Só que o outro nunca mais veio e eles
de algum jeito se cuidaram, que na falta de amor cuidado até que serve. E
chegou a ser bom, chegou mesmo, teve um Natal que chegou a haver um tipo de
carinho. Ela fez uma torta de nozes que dava um grande trabalho, uma receita da
televisão e mesmo sabendo que ele não ligava pra nada perdeu ali um dia inteiro
cozinhando, amassando as nozes, quebrando a casca dura, fervendo leite.
Uma torta de nozes cheirosa e
perfeita sem plateia: uma coisa inútil daquelas só podia ser amor. Ele não podia com doce mas ela explicou que
era a comida preferida do outro, do homem que ela gostava de verdade, e toda
vez que ela fazia achava que ele podia voltar.
Aquilo não deu raiva nele, deu foi até pena, e ele provou um pedaço e rezou
secretamente pra que o outro voltasse logo. Mas reza de quem nunca foi a Igreja
não vinga então a torta pegou foi mofo na geladeira e antes do reveillon estava
no lixo. Nunca mais teve doce naquela casa.
Ele, o nosso homem, era um homem bem
doente e pensava em morrer logo pra Antonia poder ter algum dinheiro pra ser
feliz. Só que ela apanhou foi um tumor do tamanho de um novelo de lã no pulmão.
O pior é que o médico usou essa imagem e ela nunca mais conseguiu fazer os
sapatinhos de lã pra quermesse. A pobre olhava pra lã e pensava no tumor
engordando nela, jantando os fios coloridos e trançando dentro dela pra
aumentar a doença.
Mas não botei nunca um cigarro na
boca, ela choramingou, e o doutor explicou que nada adiantava esse argumento
contra a vontade de deus que Ele quando cisma com uma coisa vou te contar. Deus
cismou de matar a Antonia com o novelo de lã e o corpo desistiu rápido e
obediente parecendo que tinha ouvido o médico.
Ele voltou então a ser só um homem e
não que isso fosse mais difícil, era de novo aquela pequena dor de se acostumar
a todas as coisas. O bom é que ele teve que organizar caixão e velório e isso
era mesmo uma coisa que ele recomendaria a qualquer um. Cuidar da morte da
Antonia fez ele achar a morte uma coisa muito boba, um procedimento burocrático
que poderia ser feito por qualquer idiota.
Ver a morte de perto, explorar suas
entranhas, esmiuçar suas pequenas tripas como uma criança faz com um sapo na
aula de ciências, acabou com todo o mistério. É que por menor que seja a vida,
o homem entendeu, ela vai ser sempre maior do que morte. Porque se até a vida
da Antonia parecia tão maior do que um sapo dissecado e seco na tábua de aço,
imagine a de alguém importante, imagina a do Harrison Ford, por exemplo.
Pro azar da humanidade, nosso homem
era então o primeiro homem do mundo que tinha entendido a morte, logo
quem. E ele bem que podia ter ido na Tv
explicar pra toda gente, ou até escrever um livro e assim quem sabe ia até
aparecer entre aspas em alguma revista em inglês e um dia, imagine, podia ser
até que o Harrison Ford achasse ele um homem importante. Se ele quisesse, podia
acabar com esse grande medo de todos, acender a luz e desmascarar esse imenso
fantasma, podia sim.
Mas ele não queria mudar nada, pra
ele estava bom como estava e tudo era bem como deveria ser. Bom dia Andrelino e
o velho abriu o sorriso de gengiva e perguntou da Antonia e ele já ia lembrar
de novo da desimportância do Andrelino e da morte e dessa bobajada toda quando
graças a Deus lembrou que estava faltando sabão em pó e leite.
Já no supermercado, seu lugar
preferido do mundo, finalmente o homem pode voltar a se preocupar com o que
realmente importa, que era lavar a roupa e alimentar esse sapo gordo que um dia
vai estar escancarado e frio em cima da mesa.
Genial! Abs
ResponderExcluirAna Luísa Alves